Bolsonaro nomeou três militares para a diretoria da recém-criada
e poderosa Autoridade Nacional de Proteção de Dados; setores temem pela
"privacidade"
Poderia ser só mais uma nomeação de militares para
cargos no governo federal. Algo que já virou lugar comum na administração
Bolsonaro. O próprio Tribunal
de Contas da União (TCU) já fez as contas e constatou que em
apenas um ano o governo Bolsonaro dobrou o número de militares em cargos civis.
Eram mais de 6.100 em julho. Mas a indicação de três militares para a
recém-criada Autoridade Nacional de Proteção de Dados deixou diversos
setores da economia em alerta. O motivo é simples: a primeira diretoria da ANPD
terá superpoderes para traçar o o destino da regulamentação da proteção de
dados dos indivíduos no Brasil, sobre a fiscalização do uso destes dados e
sobre a interpretação da lei. Dos cinco integrantes do conselho diretor, três
são militares e formam maioria em qualquer votação. E os três ficarão de quatro
a seis anos nos cargos.
Mas por que haveria preocupação com o fato de serem
militares? Porque a vocação dos militares é a segurança como defesa de
soberania e não exatamente a proteção dos dados como forma de garantir a
privacidade dos indivíduos, que é o espírito da Lei Geral de Proteção de Dados.
Waldemar Ortunho, que terá um mandato de seis anos, passou 40 anos no Ministério
da Defesa. Arthur Sabbat, mandato de cinco anos, é chefe de Segurança
do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). O outro militar é o
engenheiro de computação Joacil Rael, formado no Instituto Militar de
Engenheira (IME).
A nova diretoria terá poderes para regulamentar cerca de 50
pontos da LGPD distribuídos em 18 artigos. Poderão estabelecer diretrizes sobre
a portabilidade de dados, transferência internacional, armazenamento na nuvem,
cobrança de multas e até atuar como agente harmonizador das leis, seja com leis
de transparência, seja com lei de fake news. Outro ponto de atenção é a forte
conexão dos militares com o Planalto. A ANPD deveria ser uma agência autônoma.
No entanto, o decreto que a criou coloca até mesmo a possibilidade de a agência
usar juridicamente a Advocacia Geral da União, outro órgão ligado ao presidente
da República. Isso pode ter reflexos na imagem internacional. A depender de
como o Brasil regulamente sua lei, isso implicará os negócios globalmente. De
acordo com estudo feito pela Associação Data Privacy de Pesquisas, que elencou
os 20 países economicamente mais avançados, apenas na China e na Rússia há
militares no seu órgão de proteção de dados. E o Brasil é o único que nomeou
três de uma vez só.
A crítica em relação a nomeação de tantos militares também
chega sob o aspecto de que a ANPD deverá ser um órgão de fiscalização sobre uso
de dados não só pelo setor privado, mas também por qualquer agente do setor
público. Isso significa que a ANPD terá poderes sobre a atuação da Agência
Brasileira de Inteligência (Abin), por exemplo, ou sobre o INSS,
que é criticado por deixar vazar dados para bancos que oferecem crédito
consignado. Ou mesmo em relação ao Ministério da Justiça, que recentemente foi
repreendido pelo Supremo Tribunal Federal por ter elaborado uma lista de de
pessoas que seriam antifas. Uma agência independente, como a que foi idealizada
para a ANPD, garantiria que não houvesse abusos por parte do governo ao usar os
dados dos cidadãos.
A advogada Patrícia Peck, especialista em direito digital do
PG Advogados, levanta outra questão sobre as nomeações que é a concentração de
pessoas ligadas ao setor de telecomunicações. O presidente, por exemplo,
coronel Waldemar Ortunho é desde 2019 presidente da Telebrás. Miriam Wimmer,
nomeada para um mandato de dois anos, é diretora do serviço de telecomunicações
do Ministério das Comunicações. “Setores importantes que lidam com dados
relevantes dos indivíduos como os de saúde, financeiro e educação não estão
representados na diretoria”, diz Peck.
A LGPD transmite para os indivíduos o poder sobre
seus dados e isso trará reflexos revolucionários em diferentes setores. Um
deles é o bancário com o open banking ou o Pix, em que os consumidores passam a
poder levar suas informações para a instituição que quiserem. As empresas
também serão obrigadas a informar o que fazem com os dados que coletam e
explicar com que finalidade vão usá-los. Se coletarem dados desnecessários para
a prestação de serviços ou repassarem dados a terceiros sem autorização ficarão
à mercê de multas. O advogado Adriano Mendes, do escritório Assis e Mendes
Advogados, explica que pontos importantes da lei precisam ser regulamentados
como, por exemplo, que pequenas e médias empresas serão obrigadas a ter a
figura do DPO (Data Protector Officer – chefe de proteção de dados), função
criada pela lei, que na metáfora de Mendes seria a do farmacêutico responsável.
A lei obriga as empresas a tratar com cuidado os dados de seus
clientes. A ideia que está por trás da criação da Autoridade
Nacional de Proteção de Dados, segundo Mendes, é a de que ela se torne um órgão
tão importante como é hoje o Conselho Administrativo da Defesa da Concorrência
(Cade).
Dos cinco nomeados, a única representante do setor privado é
a advogada Nairane Farias Rabelo Leitão. Segundo O Antagonista, ela é sócia de
Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, secretário-geral do Senado ligado a
Renan Calheiros. Todos os indicados por Bolsonaro terão de passar por uma
sabatina no Senado, prevista para acontecer no dia 19. A ANPD já está atrasada
e deveria ter sido criada antes da lei entrar em vigor. O governo Bolsonaro
tentou jogar com a barriga a entrada em vigor da lei por meio de uma medida
provisória, mas uma manobra do Senado fez com que a LGPD passasse a valer ainda
em setembro.
Fonte: Veja