A Constituição de 1988
estabeleceu que a função estatal de serviços notariais e de registros públicos
seja delegada a uma pessoa física que os exercerá em caráter privado. Estes
fazem jus aos emolumentos integrais dos atos praticados, sendo esta a verba remuneratória
e a fonte de custeio dos titulares das serventias extrajudiciais.
Bem é verdade que as
serventias notariais e registrais encontram-se sob características sui
generis, que transita entre o caráter público e o privado. De um lado, sendo
uma delegação decorrente de forma direta da Constituição, em seu artigo 236,
não há dúvida de que se trata de uma função pública. Até por isso tais
serventias são confiadas aos Tribunais de Justiça dos estados, os quais
organizam concurso público de provas e títulos, tanto para provimento quanto
para remoção. E, desde a Constituição, não há outra forma de ingresso ou
trânsito definitivo entre as serventias, como bem explicou o ministro Dias
Toffoli em seu voto no julgamento da ADI 4.300.
Por outro lado, sendo o
Estado incapaz de prestar o serviço, ele delega a função a um particular que a
exercerá de forma privada, ainda que de forma personalíssima. Isso porque
competirá exclusivamente, dentro das normas primárias e secundárias estabelecidas
pelo poder público, administrar a serventia, sendo que, em alguns casos, existe
nítida natureza até mesmo comercial, com concorrência ampla, como no
tabelionato de notas. Não mal comparando, é uma situação análoga à privatização
de serviços públicos com a criação de meios de controle sobre eles — caso das
agências reguladoras.
Logo, não se trata de uma
inexistência de consenso sobre ser público ou privado, mas sim uma natureza que
transita entre ambos. Esse é um pressuposto essencial para compreender a
perspectiva desse artigo, pois há nela implicações práticas.
As normas gerais dos
emolumentos constam da Lei 10.169/00, que regula o artigo 236, §2º da
Constituição, e estabelecem que os estados e o Distrito Federal fixarão os
valores relativos aos atos praticados, de sorte que o custo e a adequada
remuneração dos serviços prestados sejam assegurados e garantam o equilíbrio
econômico-financeiro.
Emolumentos
têm natureza tributária
O Supremo Tribunal Federal,
no julgamento da ADI 1.378, a propósito, fixou o entendimento de que os emolumentos
cobrados por notários e registradores possui natureza tributária sob a
denominação “taxa”, uma vez que remuneram pela prestação de um serviço público.
Cabe lembrar que o Código
Tributário Nacional adota, em seu artigo 5º, uma classificação trinária,
dividindo os tributos entre impostos, taxas e contribuições de melhoria. Embora
o artigo 145 da Constituição também adote a mesma classificação trinária, é
certo que o teor constitucional excepcionou tal circunstância com os
empréstimos compulsórios e outras contribuições especiais (teoria
quinquipartite ou pentapartite dos tributos).
Nessa esteira, a definição
de taxa encontrada tanto na Constituição (artigo 145, II), quanto no CTN
(artigo 77), auxiliam a entender por qual razão os emolumentos são assim
considerados, eis que da utilização efetiva de serviço público específico e
divisível prestado ao contribuinte — ainda que tal serviço seja administrado
por um particular.
Essa taxa remuneratória não
se confunde com as custas dos serviços, não obstante, essas sejam arrecadadas
em conjunto pelo responsável dos serviços notariais e de registros. As custas,
assim, constituem-se dos valores dos emolumentos e das obrigações assessorias
de contribuição para os fundos estaduais, por exemplo, que têm como objetivo
primordial compensar e assim, remunerar, os atos isentos e gratuitos praticados
pelos registradores civis de pessoas naturais, artigo 8º da Lei dos
Emolumentos [1].
Neste aspecto, cumpre
observar em qual medida a arrecadação, ou melhor, a remuneração de um
particular, pessoa natural, que por outros particulares é remunerado, pessoa
física ou jurídica, por meio de emolumentos, está ou não está protegido pelo
sigilo fiscal do Código Tributário Nacional, não obstante, a necessidade de
prestar informações aos órgãos de controle e fiscalização [2].
Primeiramente, é preciso
ressaltar que as serventias extrajudiciais não se encontram sob o âmbito da Lei
de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), a qual engloba, nos termos dos seus
artigos 1º e 2º:
Sigilo
legal ou constitucional
Como se nota, as serventias
extrajudiciais não se enquadram em nenhum desses conceitos, o que afasta, por
exemplo, a regra de publicidade absoluta dos seus atos. Assim, por exemplo, se
o ato é de interesse público, a sua exposição é obrigatória. Mas, caso
protegido por algum sigilo legal ou constitucional, prevalecerá sobre a
publicidade. Pensemos, por exemplo, em documentos atinentes ao nascimento de
uma criança que foi adotada.
A propósito, a própria Lei
de Registros Públicos, em seu artigo 30, VI, exige dos profissionais o dever de
sigilo sobre documentação e assuntos de natureza reservada de que tenham
conhecimento em razão do exercício da profissão.
Disso se conclui que nem
todas as informações atinentes às serventias extrajudiciais são públicas,
principalmente aquelas que dizem respeito à administração da própria serventia,
e não ao conteúdo dos atos por ela armazenados — e, como visto acima, nem mesmo
todo esse conteúdo é público.
Ademais, a Lei Geral de
Proteção de Dados estabeleceu de maneira clara o que são dados pessoais
sensíveis, alcançando a pessoa física, que, em caráter privado, exerce a função
pública delegada. Dúvidas não há que a denominação “cartório” ou “serventia extrajudicial”
indica o lugar físico onde funcionam os tabelionatos, os ofícios de notas, os
registros públicos, e se mantêm os respectivos arquivos, não se confundido com
a pessoa natural outorgada da função pública.
Nesta premissa, a pessoa
natural que exerce a função de notário e registrador possui direito à liberdade
e privacidade, que deve ser observada pelo poder público, ao recepcionar os
dados pessoais econômicos relativos à atividade que desenvolvem, dentre os
quais a remuneração. Frise-se, novamente, o conteúdo por eles armazenado não
deve se confundir com a administração desempenhada internamente para atingir
tal finalidade.
Assim, a escritura de um
imóvel armazenada em um sistema em nuvem e digitalizada a partir de um
computador moderno é um dado público, mas aquilo que o cartorário gastou com a
implementação do sistema, aquisição de computadores ou mesmo pagamento de funcionários
para realizar tal função não é uma informação que precise ser do conhecimento
de todos.
Tratamento
de dados pessoais
A necessidade de prestar
informações aos órgãos de controle financeiro e de fiscalização, dos dados
pessoais da pessoa natural, com função de notário e registrador, ao agente de
tratamento (controlador e operador), no caso o poder público, serve para cumprir
o prescrito no artigo 7º, II da LGPD, que objetiva materializar as atribuições
legais do serviço público.
Nesta toada, o tratamento
dos dados pessoais deve preservar a privacidade econômica da pessoa natural,
devendo ter sua publicidade controlada e restrita aos dados que denotem
produtividade e eficiência arrecadatória, como repositório estatístico e de
controle.
Mas informações de natureza
pessoais, como as de ordem econômica, possuem um aspecto restrito e servem ao
poder público, só podem ser quebradas justificadamente e por autorização que
fundamente a necessidade.
Saliente-se, desde já, a
prestação de contas se dá perante o poder público, não perante o público em
geral, eis que a atividade é exercida de forma privada por delegação daquele.
Pois bem.
Ocorre que a Resolução nº
389/21 do Conselho Nacional de Justiça, a quem compete o controle da atuação
administrativa e financeira do Poder Judiciário e de seus serviços auxiliares,
alterando o parágrafo 3º artigo 6º da Resolução 215/15, estabeleceu que as
serventias extrajudiciais devem criar em seus sítios eletrônicos um campo
designado “transparência” e, mensalmente, fazer constar: a) o valor obtido com
emolumentos arrecadados, outras receitas, inclusive eventual remuneração
percebida pelo responsável pela serventia e b) o valor total das despesas.
Exposição
de dados privados é excesso
Como antecipado, os
emolumentos arrecadados possuem natureza remuneratória da pessoa física, ainda
tributariamente classificados como “taxa”, constituindo, assim, dado pessoal
econômico que goza de sigilo fiscal, acessível pelos órgãos de controle nos excepcionais
casos previstos em lei.
Cabe lembrar que a
Confederação Nacional dos Cartórios ingressou com Pedido de Providências nº
0006532-48.2022.2.00.0000 no CNJ, argumentando que houve erro material na
Resolução nº 389/2021, que acabou por submeter indevidamente os serventuários
ao alcance da Lei de Acesso à Informação, pois:
Saliente-se que a
arrecadação de todos os cartórios do Brasil já consta do Portal Justiça Aberta,
do próprio CNJ, facilmente acessível a qualquer cidadão. Nesse sentido, a
exposição de dados privados sobre receita, despesa e remuneração dos
cartorários configura excesso e se desvia da finalidade de promoção de
publicidade por interesse público, violando o artigo 6º, I, da LGPD (realização
do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados
ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com
essas finalidades).
No mesmo pedido, a
Confederação, a qual integrava Grupo de Trabalho direcionado ao tema rememorou
a realidade brasileira, em que 85% dos cartórios do país são de pequena
expressão e sequer possuem sítios na internet.
Ademais, a fiscalização das
serventias extrajudiciais, como antecipado, é análoga ao regime aplicável à
concessão e permissão de serviços públicos, em que as despesas não são
publicizadas e muito menos há qualquer controle de acesso. Sem olvidar, contudo,
que nos termos da legislação, a fiscalização se dá pela Corregedoria dos
respectivos Tribunais e seus juízes, e não pelo público.
Assim, em conclusão, a
necessária adequação da Resolução nº 389/21 é premente para a desobrigação de
publicar no site privado, vinculado à pessoa natural que tem a delegação de
função pública, informação privada da sua atividade, mantendo-se, contudo, a necessidade
de informar ao agente de tratamento, aqui o Conselho Nacional de Justiça, tais
informações, que, ao tratá-las nos termos da LGPD, deve publicar no portal de
transparência no que concerne a dados estatísticos e de controle de
produtividade e eficiência, bem como a necessária fiscalização por parte das
Corregedorias.
Fonte: Conjur