Mudança
na regra de competência quanto à transmissão de bens móveis pode trazer
impactos relevantes
Um dos aspectos menos investigados da reforma
tributária instituída pela Emenda Constitucional 132/2023
diz respeito às alterações promovidas no ITCMD,
o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doações.
As mudanças incluem a previsão de progressividade do
tributo em razão do valor dos bens transmitidos (art. 155, §1º, VI, CF/88), a
concessão de imunidade tributária às doações destinadas a projetos
socioambientais ou destinados a mitigar os efeitos das mudanças climáticas, no
âmbito do Poder Executivo da União (art. 155, §1º, V, CF/88), bem como a
concessão de imunidade sobre transmissões para instituições sem fins lucrativos
com finalidade de relevância pública e social (art. 155, §1º, VII, CF/88)[1].
Dentre as modificações trazidas pela reforma
tributária, porém, aquela que tem um potencial de trazer impactos relevantes na
operacionalização do ITCMD refere-se à mudança na regra de competência quanto à
transmissão dos bens móveis.
Reforma
tributária e competência do ITCMD
Em sua redação original, o art. 155, §1º, inciso II,
da CF/88 atribuía competência ao estado ou ao Distrito Federal “onde se
processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador” para cobrar
o mencionado tributo. Em sua atual redação, contudo, a competência para sua
cobrança foi atribuída ao Estado ou Distrito Federal “onde era domiciliado o de
cujus, ou tiver domicílio o doador”.
No que diz respeito ao fato gerador do ITCMD sobre
doações, não houve alteração, permanecendo como competente a unidade da
Federação em que tiver domicílio o doador; mas, em relação ao fato gerador do
ITCMD sobre transmissão “mortis causa”, a EC 132/23 abandonou o local do
inventário ou arrolamento como critério, substituindo-o pelo domicílio do
titular da herança. Com isso, o domicílio do sujeito transmitente passa a ser o
critério geral para definir a competência do ITCMD e, por consequência, a
condição de sujeito passivo do imposto[2].
Domicílio
Ainda que alguns possam afirmar que o “domicílio” é um
conceito do direito civil ou do direito processual, na realidade, ele consiste
em um conceito da teoria geral do direito; uma vez que o domicílio indica a
sede jurídica da pessoa, fixando no espaço as diversas situações jurídicas que
tenham aquela determinada pessoa como titular.
O domicílio é o espaço em que a pessoa exerce os atos
de sua vida civil como o centro de sua atividade no mundo jurídico[3]; é o ponto no espaço para onde a própria
pessoa se dirige e para onde as demais pessoas de endereçam ao tratar com
aquela[4].
Mas domicílio nem sempre equivale à casa do indivíduo.
Tecnicamente, “o domicílio é o espaço em que o fato da domicilização tem
eficácia”. A domiciliação pode decorrer da lei ou de ato voluntário da pessoa[5]. Quando decorre de ato voluntário, a
fixação do domicílio será um ato jurídico em sentido estrito, no qual a vontade
tem relevância, porém as consequências jurídicas já estão predeterminadas pelo
sistema[6].
A possibilidade de eleição do domicílio é regra de
direito geral (art. 70 do CC/02), bem como é regra aplicável às relações de
direito tributário (art. 127 do CTN), de forma que cada pessoa poderá decidir
espontaneamente o local de sua preferência[7]; e, no caso de não escolher, incidirá a
norma geral da “residência habitual” (art. 127, inciso I, do CTN).
Nem sempre, porém, a pessoa estabelece sua residência
em um único lugar de forma fixa. A depender, ela poderá viver em mais de um
lugar, alternar localidades ou mesmo não ter residência habitual. Isso porque
esse centro de atividades não precisa ser o “principal” centro. A ideia de
principalidade não compõe o suporte fático do fato jurídico em questão; porque
basta que haja um centro de atividades, o qual pode ser múltiplo[8]. Assim, o sistema jurídico estabelece
algumas regras especiais, para estabelecer um local a ser considerado o
domicílio desses indivíduos.
Se uma pessoa física tiver mais de uma residência e
viva alternadamente entre elas, o seu domicílio será qualquer uma delas (art.
71, CC/02); e se a pessoa não tiver residência habitual, isto é, se encontre
cada dia em um novo lugar, será seu domicílio o lugar onde quer que seja
encontrada (art. 73, do CC/02).
Conflito
de competência
Perante as alterações trazidas pela reforma
tributária, criou-se um contexto insolúvel de conflito de competências,
especialmente quando o “de cujus” tiver múltiplas residências em estados
distintos da Federação. Assim, se o autor da herança viver alternadamente entre
duas ou mais unidades federativas, nos termos da nova redação do art. 155, §1º,
inciso II, da CF/88, cada uma dessas unidades será competente para cobrar o
ITCMD sobre os bens móveis, títulos e créditos transmitidos.
No regime anterior, esse conflito era evitado pelo
fato de que a competência era definida pelo local de abertura do inventário e,
consequentemente, a competência tributária era definida de maneira correlata às
normas do processo civil (art. 48 do CPC/15); de forma que, uma vez fixada a
competência do procedimento de inventário, ficaria igualmente definida a
competência tributária.
Contudo, a nova disposição instituída pela EC 132/23
para o art. 155, §1º, inciso II, da CF/88 cria um cenário de conflito:
considerando que a competência está desligada do local de abertura do
procedimento de inventário e que se pode haver múltiplos domicílios, então
poderá haver, potencialmente, múltiplos sujeitos ativos para o ITCMD.
Interessante notar que a preocupação do Congresso
Nacional, com a alteração da regra, era justamente impedir o “planejamento
tributário”, como registrou o deputado Aguinaldo Ribeiro, relator da reforma
tributária na Câmara, em seu parecer de 5 de julho de 2023:
“Além disso, a competência do ITCMD sobre bens móveis,
títulos e créditos deixou de ser de competência, no caso de transmissão causa
mortis, do estado onde se processar o inventário ou arrolamento, passando a ser
daquele onde tiver domicílio o de cujus. Evita-se, assim, planejamento
tributário que se tornou frequente de abertura do inventário ou arrolamento em
locais com o simples propósito de redução de carga fiscal".
Primeiramente cabe ressaltar que o local de
processamento do inventário nunca foi absolutamente livre, pois sempre esteve
sujeito às normas de direito processual, de forma que o seu descumprimento
poderia sujeitar o processo de inventário a uma nulidade relativa passível de
ser questionada pelo fisco estadual. Independentemente disso, falecendo uma
pessoa domiciliada em mais de um estado, cada um poderá, no regime instituído
pela EC 132/23, arrogar para si a competência sobre o ITCMD.
Pode-se-ia dizer que, nesse caso, caberia ao
contribuinte a faculdade de escolher o local para efetuar a declaração do
ITCMD. O que, em tese, é plenamente permitido pelo atual sistema jurídico. No
entanto, isso não evitaria que o estado preterido na escolha pudesse autuar os
herdeiros e realizar o lançamento de ofício do tributo em seu favor.
Nesse sentido, o próprio CTN prevê um direito à
Administração Tributária para recusar de forma fundamentada a escolha do
domicílio tributário[9], efetivamente obstando a eficácia do fato
ou ato de domicilização do contribuinte perante o Poder Público, na hipótese em
que o domicílio eleito “impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a
fiscalização do tributo” (Art. 127, §2º, do CTN), de forma a considerar como
domicílio para as relações tributárias “o lugar da situação dos bens ou da
ocorrência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação” (art. 127, §1º, do
CTN).
Mas tal regra serve apenas para reiterar o conflito de
competências, sobretudo porque o lugar de situação dos bens ou da ocorrência da
transmissão da herança corresponde ao “ao lugar do último domicílio do
falecido” (art. 1785 do CC/02). Ou seja, mesmo que a autoridade tributária
decida exercer o direito que lhe é assegurado pelo art. 127, §1º, do CTN,
termina-se incidindo em um raciocínio circular de procurar o domicílio do “de
cujus”
Enquanto não for editada Lei Complementar para
disciplinar esse específico conflito de competência (art. 146, inciso I, da
CF/88), caberá ao autor da herança, quando ainda em vida, fixar seu domicílio
tributário, nos termos do art. 127 do CTN, como forma de reduzir as
probabilidades de discussão.
Fonte: JOTA