No artigo anterior, traçamos uma linha de
desenvolvimento das especialidades dos ofícios da fé pública no curso da
história, mostrando como escrivães, tabeliães e registradores firmaram-se como
órgãos especializados, cada qual com suas atribuições bem definidas e
demarcadas. Vimos também como as transformações tecnológicas e normativas vêm
de esboroar os lindes definidores dessas especialidades, promovendo uma nova
concentração de atribuições e funções, com efeitos diretos na arquitetura
tradicional da titulação pública no Brasil.
De "volta para o futuro",
experimentamos a reconformação das especialidades, embora em outros termos. A
digitalização dos meios não apenas condiciona os conteúdos - como na boutade de
McLuhan -, mas põe em xeque os próprios fundamentos da titulação sob a
perspectiva jurídica tradicional. Bits substituem formulários; extratos
espiritualizam os títulos, agentes de IA (agentic AI) progressivamente absorvem
atribuições do escrivão, do notário, do registrador; e os títulos - outrora
celebrados e cercados de ritos cerimoniais e reconhecidos como verdadeiros pelo
próprio Estado - agora podem nascer diretamente das máquinas, sem qualquer
intermediação dos ofícios da fé pública.
Para onde caminha o nobile officium
registral, da escrivania e da notaria?
A ressureição da pública-forma
Voltando às cartas de sentença notariais,
as NSCGJSP-II dispõem o seguinte em seu Cap. XIV, no item 218, que, a critério
do interessado, "as cartas de sentença poderão ser formadas em meio físico
ou eletrônico, aplicando-se as regras relativas à materialização e
desmaterialização de documentos pelo serviço notarial".
As expressões contidas na norma paulista
representam uma figura de linguagem, eis que a "desmaterialização"
(digitalização) e "materialização"
(impressão/reprodução/"papelização") nada mais são do que processos
de transporte e fixação da informação em um dado suporte material - seja ele
magnético, óptico, cartáceo etc. Trata-se do fenômeno de transmigração
intermediática, como veremos abaixo, mas note-se: um documento
"materializado" não o torna um original para todos os efeitos legais.
Será sempre uma mera cópia, à exceção de um original tirado de um original, que
é a reprodução dos documentos eletrônicos assinados digitalmente com
assinaturas qualificadas.
O que nos chama a atenção é que a operação
de transubstanciação midiática de documentos públicos e privados
(materialização/desmaterialização) nada mais seria do que a revivificação da
conhecida figura da pública-forma, ora ressurrecta, depois de abandonada pelo
Direito brasileiro há várias décadas. Aqui se dá o ressurgimento de uma antiga
figura do tabelionado medieval, repaginada para desafiar as novas demandas do
admirável mundo novo dos meios digitais.
Voltarei ao tema da pública-forma digital
em outro artigo. Noto, de passagem, que admitir-se a registro um título
"desmaterializado/materializado" será o mesmo que franquear o acesso
de meras cópias reprográficas (mesmo quando autenticadas pelo tabelião) como
título inscritível, o que sempre se obviou no âmbito dos registros
imobiliários.
Simulacros titulares
Estamos prestes a admitir simulacros de
títulos no processo registral. A realidade jurídica (um título com origem,
materialidade, portando presunções de legalidade e autenticidade) pode ser
suprimida e substituída por sua emulação funcional (bits, IA, algoritimização
de processos e registros dirigidos por dados (data-driven), um
"duplo" que descortina um novo direito.
Os espelhos e a cópula são abomináveis,
disse um dos heresiarcas de Uqbar: eles "multiplicam o número dos
homens". Os novos sistemas multiplicam as imagens arredias à sua densidade
material e autêntica, substituindo a realidade jurídica por espelhos
multifacetados.
A modernidade é disruptiva. No contexto
cultural em que essas ideias vicejam, abundam metáforas para qualificar a
revolução em curso. Steven Pinker assegura-nos que "a revolução digital,
ao substituir átomos por bits, está desmaterializando o mundo bem diante de
nossos olhos". Para ele, a tecnologia digital "desmaterializa" o
mundo. Ele parece sugerir que os bits representariam os tijolos fundamentais do
edifício de um admirável mundo novo da hiper-realidade, como sugerido por
Baudrillard. Nessa visão atomista repaginada, nada existiria, exceto bits,
exaurido o mundo de tangibilidade concreta e substituído por representações.
Pinker reproduz o pensamento original de
Nicholas Negroponte, para quem a mudança de átomos para bits seria uma
tendência irreversível na sociedade - "não há como detê-la", dirá,
com indisfarçável otimismo. "A melhor maneira de avaliar os méritos e as
consequências da vida digital - diz ele - é refletir sobre a diferença entre
bits e átomos". Assim como os jornais, revistas, livros, títulos,
documentos, cartas de sentença, formais, certidões etc., que chegavam até nós
sob a forma de átomos (papeis, ofícios, correios etc.), na era da informação
nos chegarão por sequências de bits e bytes à velocidade da luz. As
palavras-chaves aqui são: descentralização e acesso remoto a instâncias
judiciais e extrajudiciais, instantaneidade, fiabilidade tecnológica (não jurídica)
- o que pode promover a redução de custos e tempos processuais. O público
"será mais bem servido por aqueles que souberem responder com maior
rapidez e imaginação no emprego dos bits."
Essa visão mostrou-se excessivamente
otimista. É possível cogitar que os meios digitais não apenas transformam os
conteúdos, mas, no limite, podem suprimir o real em sua substância tangível,
substituindo-o por um conjunto de signos funcionais, desvinculados de qualquer
mediação dotada de valor ético ou ancoragem institucional - como
tradicionalmente se reconhecia no papel do juiz, do escrivão e do notário.
Como a seu tempo sustentou João Mendes de
Almeida Jr., os órgãos oficiais "são subordinados somente à verdade e à
realidade dos fatos que eles próprios praticam, das declarações que tomam, dos
fatos que se passam na sua presença e assistência". E concluiu: "E
esta posição é uma garantia, não só para as partes, como também para os
próprios Juízes". No contexto dos títulos eletrônicos, formados sem o
concurso dos órgãos da fé pública, esvai-se a noção clássica de ato
autêntico como fenômeno social, jurídico e comunicativo que produz a prova
dita autêntica e pré-constituída (instrumentum), cercada de formalidades
publicísticas e ritualísticas para mobilizar a infraestrutura de garantia e
segurança jurídica.
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Fonte: Migalhas