O avanço da tecnologia sempre traz
novidades que facilitam o acesso a informações relevantes, como é o caso da
Central de Escrituras e Procurações (também chamada de Busca CEP). Essa
ferramenta permite que qualquer interessado consulte a existências desses atos
notariais em nome de terceiros — o que até então era restrito aos tabeliães de
notas.
A mudança exige uma reflexão sob a ótica
da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD): a publicidade dessas informações
ofende a privacidade das partes envolvidas?
Aspecto institucional
Após deliberação do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) [1] e
a publicação do Provimento CNJ nº 194/2025, passou a ser permitida a consulta
pública à funcionalidade “Busca CEP”. Até então, a ferramenta era módulo
operacional da Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados
(Censec), de consulta restrita a notários.
A Busca CEP permite que qualquer cidadão
consulte os atos lavrados em nome de determinada pessoa natural ou jurídica. A
consulta retorna o nome do cartório, o tipo de ato (escritura ou procuração
pública) e os livro e folhas do livro onde foi lavrado — sem revelar o conteúdo
do instrumento, nem o objeto da negociação.
À primeira vista, essa abertura pode gerar
desconfiança sob o argumento de que se estaria violando a privacidade dos
cidadãos. No entanto, uma análise mais profunda revela que a medida, se
corretamente utilizada, é compatível com os princípios da proteção de dados.
Mais do que isso: pode ser uma ferramenta a serviço do interesse público.
Do ponto de vista institucional, a medida
deve ser entendida como uma iniciativa que equilibra publicidade notarial,
eficiência administrativa e proteção de dados pessoais.
O princípio da finalidade — pilar da LGPD
— é atendido, pois a abertura da consulta tem como escopo legítimo a ampliação
do acesso à informação pública, favorecendo a proteção do crédito e a
desjudicialização.
Com efeito. o objetivo de facilitar o
acesso aos dados de procurações e escrituras é facilitar a busca patrimonial em
face de credores inadimplentes. Por um lado, isso ajuda a proteger o crédito,
diminuindo o risco envolvido e abaixando as taxas de juros. Por outro,
contribui para desafogar o Judiciário, cuja “taxa de congestionamento
processual […] encontra maiores índices exatamente nos processos de
execução” [2].
O sistema também respeita o princípio da
necessidade, pois os dados fornecidos pela ferramenta são mínimos: não há
divulgação do objeto do ato, do valor da transação, nem de dados de terceiros
eventualmente envolvidos. A consulta apenas indica a existência de determinado
ato em nome da pessoa objeto da busca, funcionando como um índice público (e
não como a certidão).
De igual modo, são cumpridos os princípios
da segurança e da prevenção. O acesso à ferramenta exige a identificação do
usuário, com fornecimento de CPF ou CNPJ e assinatura digital, o que evita
abusos e impede a prática conhecida como webscraping (raspagem
automatizada de dados).
A rastreabilidade das consultas colabora
com o princípio da responsabilização e da prestação de contas, já que permite
que o Colégio Notarial do Brasil (CNB) fiscalize seu uso e identifiquem
eventuais desvios.
Aliás, a legitimidade da medida decorre da
forma como foi construída. O Colégio Notarial, entidade representativa dos
tabeliães de notas, participou ativamente do processo perante o CNJ.
Do relatório da decisão do CNJ [3],
depreende-se que várias das medidas de segurança que hoje tornam a Busca CEP
uma ferramenta segura e adequada à LGPD decorrem da participação ativa do CNB
no feito.
E mais: essa participação conferiu
representatividade institucional dos notários e assegurou a harmonia da
ferramenta com o ordenamento jurídico brasileiro, que confere aos tabeliães a
competência para conservar a publicizar os atos lavrados.
Houve, portanto, respeito à função social
da atividade notarial. A medida garante, por um lado, que o acesso à informação
seja facilitado para o cidadão e, por outro, preserva o papel do notário como
guardião do conteúdo dos atos [4].
Quem deseja conhecer os detalhes de
determinada escritura ou procuração precisará solicitar certidão diretamente ao
cartório responsável. Isso mantém a viabilidade econômica da atividade notarial
e garante a autenticidade e a fé pública do documento emitido.
Essa dinâmica respeita as melhores
práticas de disponibilização de dados indicadas no parágrafo único do artigo
101 do Código Nacional de Normas:
Art. 101. O compartilhamento de dados com
centrais de serviços eletrônicos compartilhados é compatível com a proteção de
dados pessoais, devendo as centrais observar a adequação, necessidade e
persecução da finalidade dos dados a serem compartilhados, bem como a maior
eficiência e conveniência dos serviços registrais ou notariais ao cidadão.
Parágrafo único. Deverá ser dada
preferência e envidados esforços no sentido de adotar a modalidade de
descentralização das bases de dados entre a central de serviços eletrônicos
compartilhados e as serventias, por meio do acesso pelas centrais às informações
necessárias para a finalidade perseguida, evitando-se a transferência de bases
de dados, a não ser quando necessária para atingir a finalidade das centrais ou
quando o volume de requisições ou outro aspecto técnico prejudicar a eficiência
da prestação do serviço.
Percebe-se que a Busca CEP respeita com
rigor a o que consta no dispositivo acima. Ao mesmo tempo em que permite uma
consulta centralizada de dados restritos, garante que o acesso à íntegra dos
atos ocorra de forma descentralizada, por meio de certidões.
Aspecto individual
Sob a perspectiva do usuário da
ferramenta, porém, é preciso ter clareza de que o simples fato de a consulta
ser pública não exime a observância da LGPD.
A lei se aplica a qualquer tratamento de
dados, inclusive os extraídos de bases públicas. Nesse sentido, o artigo 7º, §
3º da LGPD estabelece que “o tratamento de dados pessoais cujo acesso é público
deve considerar a finalidade, a boa-fé e o interesse público que justificaram
sua disponibilização”.
Isso significa que o usuário da ferramenta
se torna agente de tratamento [5],
o que implica garantir a governança dos dados acessados. Para tanto, o
tratamento deve cumprir as condições de legitimidade previstas na LGPD [6],
a saber: a existência de base legal autorizativa do tratamento e o respeito aos
princípios de proteção de dados.
As bases legais são o que autoriza a
tratar os dados. É um rol de hipóteses taxativas previstas nos artigos 7º e 11
da LGPD (para dados comuns e sensíveis, respectivamente).
No uso da Busca CEP, ela poderá variar. Se
o interessando possui um processo judicial instaurado contra o devedor cujo
patrimônio pretende investigar, a consulta à ferramenta é fundada no exercício
regular de direitos em processo (artigo 7º, VI, LGPD). Vale ressaltar que o
usuário que faz as consultas deve ter um vínculo concreto com a parte credora,
por meio de mandato ou contrato de prestação de serviços.
Se não há processo, pode se embasar na
proteção do crédito (artigo 7º, X, LGPD) ou do legítimo interesse (artigo 7º,
IX, LGPD). Nesse caso, é preciso que o agente demonstre os requisitos
necessários para legitimação do tratamento, o que pode incluir teste de
balanceamento e relatório de impacto.
No que diz respeito aos princípios, o
agente de tratamento deve possuir um sistema de governança de dados que
satisfaça todas as exigências legais. Nesse sentido, dentre outras questões,
precisa se perguntar:
·
Utilizo os dados apenas na medida do
necessário?
·
Faço registro das operações de tratamento?
·
Mapeio os riscos envolvidos e os mitigo
com medidas técnicas e administrativas eficazes?
·
Tenho um encarregado de dados nomeado?
·
Tenho políticas e procedimentos
apropriados?
Outro aspecto decorrente dos princípios é
a necessidade de respeitar os direitos dos titulares. Para tanto, é preciso
garantir transparência por meio de avisos de privacidade claros e completos,
disponibilizar canais para atendimento de solicitações e treinar seu pessoal
para encaminhar as demandas de maneira satisfatória.
Conclusão
Em suma, a Busca CEP deve ser celebrada
como um avanço institucional. A medida é economicamente útil e juridicamente
legítima, contribuindo para a eficiência do Judiciário, a prevenção de fraudes
e a segurança jurídica nas relações negociais.
Sob aspecto institucional, os riscos à
privacidade dos titulares foram mitigados de forma eficaz, com restrição ao
conteúdo dos dados e exigência de identificação do requerente. Sob aspecto dos
usuários individuais, a conformidade à LGPD depende do uso ético e responsável
da ferramenta.
Publicidade e privacidade, eficiência e
legalidade, longe de serem conceitos antagônicos, podem e devem conviver —
desde que haja boa-fé e governança de dados.
Fonte: ConJur