A compra e venda de imóveis historicamente
enfrenta um dilema recorrente: quem deve assumir o primeiro risco? O comprador,
ao transferir valores antes de ter a escritura registrada em seu nome, ou o
vendedor, ao assinar documentos sem a certeza do recebimento integral do
pagamento? Esse impasse tem travado inúmeras negociações, gerando insegurança
para todas as partes envolvidas e expondo a fragilidade do princípio da
simultaneidade no Direito Imobiliário brasileiro.
A introdução da conta vinculada notarial,
regulada pela Lei nº 14.711/2023, representa uma
resposta jurídica moderna e robusta a esse problema, consolidando um mecanismo
similar às escrow accounts internacionais, mas adaptado ao
contexto nacional e supervisionado pelo tabelião de notas.
Marco Legal das Garantias
A Lei nº 14.711/2023 alterou a Lei dos
Notários e Registradores (Lei nº 8.935/1994), inserindo o artigo 7º-A, que
permite ao tabelião administrar valores vinculados a negócios jurídicos
privados. A conta vinculada notarial não é apenas uma conta bancária
específica, mas um instrumento jurídico que alia a fé pública notarial à
funcionalidade das modernas contas de garantia, criando um patrimônio segregado
e protegido.
O aspecto mais relevante é a constituição
de um patrimônio de afetação. Os valores depositados ficam blindados contra
qualquer constrição judicial ou fiscal, permanecendo intocados mesmo em
hipóteses de falência ou recuperação judicial das partes, ou do próprio
tabelião. Isso representa uma segurança patrimonial inédita no mercado
imobiliário brasileiro.
Aplicabilidade e funcionamento
A conta vinculada notarial efetiva o
princípio da simultaneidade, permitindo que comprador e vendedor avancem com
segurança. O comprador deposita o valor integral na conta, demonstrando
capacidade e seriedade, enquanto o vendedor tem a garantia de que o pagamento
será liberado apenas com o cumprimento das condições acordadas. O tabelião atua
como administrador imparcial e responsável, conferindo credibilidade
institucional ao procedimento.
Em transações de imóveis com
pendências documentais, como hipotecas ou financiamentos a serem quitados, o
tabelião pode coordenar o pagamento diretamente ao banco, liberando o saldo ao
vendedor somente após a regularização do imóvel. Em negociações condicionadas à
aprovação de licenças ou financiamento, os valores permanecem em custódia até a
implementação da condição, garantindo ressarcimento automático caso a condição
não se concretize.
Já em operações corporativas, como
aquisições empresariais ou M&A imobiliário, parcelas do preço podem ser
retidas como garantia de passivos ocultos, liberadas conforme cronogramas
pré-estabelecidos, eliminando a necessidade de garantias bancárias onerosas.
Papel do tabelião e impacto institucional
A atuação do tabelião como administrador
da conta vinculada representa um diferencial competitivo. Possuindo fé pública,
o tabelião goza de presunção de veracidade em seus atos, deve atuar com
imparcialidade e responde civil, administrativa e criminalmente por suas ações,
estando sob fiscalização permanente do Judiciário. Essa combinação de
autoridade e responsabilidade confere ao instituto uma credibilidade única,
ausente em mecanismos privados de escrow.
Além da segurança jurídica, o
custo-benefício é notável: a tarifa média gira em torno de 0,08% sobre o valor
da transação, tornando a solução viável para operações de diferentes portes. A
custódia é gratuita pelo cartório, remunerado pelo banco conveniado,
democratizando o acesso a garantias que antes eram restritas a grandes
transações.
Limitações e perspectivas
Como toda inovação, o instituto apresenta
limites: seu funcionamento depende de condições objetivamente verificáveis;
cláusulas vagas ou subjetivas não são adequadas ao modelo. Em caso de
divergências, o tabelião não arbitra, apenas documenta a situação e orienta
para resolução consensual ou judicial. Além disso, a implementação ainda é
gradual, com cerca de 400 cartórios habilitados em um universo de 8.500.
Apesar dessas limitações, o impacto
potencial no mercado é significativo: aumenta a confiança de compradores e
investidores, especialmente estrangeiros familiarizados com escrow
accounts; acelera negócios complexos; reduz litígios; e fornece aos
advogados uma ferramenta estratégica para estruturação e prevenção de
conflitos.
Conclusão
A conta vinculada notarial representa um
marco no Direito Imobiliário brasileiro. Ao combinar a tradição da fé pública
notarial com a modernidade de mecanismos de escrow, oferece
segurança jurídica plena, previsibilidade e credibilidade institucional. O
princípio da simultaneidade, até então um ideal teórico, transforma-se em
realidade prática, acessível e aplicável em negociações de todos os portes.
Para profissionais do setor, advogados,
tabeliães e investidores, compreender e utilizar este instrumento não é apenas
vantajoso — é essencial diante da nova era das transações imobiliárias no
Brasil.
Fonte: Conjur