A lei 11.101/05, reformada pela lei
14.112/20 ("LRF"), tem como eixo central o equilíbrio entre a
preservação da atividade econômica e a observância dos direitos dos credores.
Dentre os inúmeros temas que suscitam
controvérsias em sua aplicação prática, destaca-se a definição dos créditos
sujeitos e não sujeitos aos efeitos do processo de recuperação judicial,
especialmente nos casos que envolvem garantias fiduciárias constituídas por
terceiros, ou seja, situações em que o bem alienado fiduciariamente não integra
o patrimônio da sociedade em recuperação.
Como se sabe, o artigo 49, §3º da LRF
exclui da submissão à recuperação judicial o crédito garantido por propriedade
fiduciária. Entre os principais argumentos utilizados para afastar a submissão
do crédito fiduciário à recuperação judicial destacam-se: (i) o fato de que o
bem dado em garantia deixa de integrar o patrimônio do devedor, uma vez que sua
propriedade é transferida ao credor fiduciário no momento da constituição da
alienação; e (ii) a compreensão de que a sujeição desse crédito ao processo recuperacional
enfraqueceria a própria eficácia da garantia, comprometendo a segurança do
sistema de crédito, com potenciais impactos negativos na previsibilidade
jurídica e no aumento do spread bancário.
Partindo do princípio de que a LRF regula
temas relacionados ao acervo patrimonial do devedor, e que, portanto, o §3º do
artigo 49 da LRF não diz respeito às garantias prestadas por terceiros,
conclui-se pela ausência de vínculo entre o bem objeto da garantia e o devedor
fiduciário, de modo que o crédito não poderia ser classificado como
extraconcursal, devendo ser tratado como crédito quirografário. No entanto,
esse não é o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça
("STJ"), e não há entendimento pacificado do Tribunal de Justiça de
São Paulo ("TJSP") sobre a matéria, ainda que esteja vigente o
Enunciado VI das Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP, conforme se
verá adiante.
A jurisprudência do STJ e do TJ/SP sobre o
tema
O caso paradigmático que trata do tema é o
recurso especial nº 1.938.706/SP, julgado em 14 de setembro 2021, em que a
Terceira Turma do STJ, por unanimidade, reafirmou o entendimento fixado no
Recurso Especial nº 1.549.529/SP (julgado em 28.10.2016) no sentido de que o
crédito garantido fiduciariamente por bem de terceiro deve ser classificado
como extraconcursal, nos termos do artigo 49, § 3º, da LRF, sendo irrelevante
se o bem é de terceiro ou da empresa em recuperação, dado que o dispositivo
legal "afasta por completo dos efeitos da recuperação judicial não apenas
o bem alienado fiduciariamente, mas o próprio contrato por ele garantido."
A justificativa adotada foi a de que o
referido dispositivo legal não distingue se o bem dado em garantia pertence à
devedora ou a terceiro, sendo seu objetivo principal a proteção do instituto da
garantia fiduciária. Tal posicionamento também foi adotado pela Quarta Turma,
no Recurso Especial nº 1.875.972/SP (julgado em 2.12.2020) e no Agravo Interno
no Recurso Especial nº 1.806.698/SP (julgado em 4.3.2024), consolidando o
entendimento de que o bem de terceiro em garantia fiduciária deve ser excluído
dos efeitos da recuperação judicial. No mesmo sentido, o Recurso Especial nº
1.933.995/SP (julgado em 25.11.2021), e o Agravo Interno no Agravo em Recurso
Especial nº 1.810.708/SP (julgado em 15.5.2023).
Foi com a consolidação desse entendimento
que o STJ passou a não conhecer dos recursos1 que buscavam o reconhecimento da
concursalidade do crédito garantido por terceiro, aplicando a súmula 568 do
STJ, a qual dispõe que "O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal
de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver
entendimento dominante acerca do tema".
Se por um lado o STJ consolidou o
entendimento no sentido de que os créditos garantidos fiduciariamente, mesmo
que por bens de propriedade de terceiros, serão extraconcursais, as Câmaras
Reservadas de Direito Empresarial do TJ/SP, inclusive em julgamentos
posteriores à fixação do entendimento do STJ, vêm se posicionando de forma não
uníssona sobre o tema.
As Câmaras Reservadas de Direito
Empresarial do TJ/SP por muito tempo se posicionaram pela concursalidade do
crédito garantido fiduciariamente por bem de propriedade de terceiro, tendo
inclusive aprovado em 2021 o Enunciado VI que sintetiza o posicionamento do
colegiado: "Inaplicável o disposto no art. 49, § 3º, da lei
11.101/2005, ao crédito com garantia prestada por terceiro, que se submete ao
regime recuperacional, sem prejuízo do exercício, pelo credor, de seu direito
contra o terceiro garantidor".
Entretanto, a análise recente dos casos
revela a existência de precedentes divergentes a respeito do tema, ora
reconhecendo a natureza concursal do crédito2, ora conferindo-lhe natureza
extraconcursal3.
Cabe destacar que os precedentes
anteriormente proferidos pelo TJSP, antes da consolidação da tese pelo Superior
Tribunal de Justiça, continham ressalvas quanto à possibilidade de revisão do
entendimento por aquela Corte. Por essa razão, a 2ª Câmara Reservada de Direito
Empresarial do TJ/SP preservava a prerrogativa de alterar sua posição, caso
verificasse que as decisões do STJ - reconhecendo a extraconcursalidade do
crédito garantido por bem de terceiro - estivessem efetivamente consolidadas.
No mais, a fundamentação para não seguir o
entendimento pacificado do STJ se justifica no fato de que não se trata de
entendimento vinculante, abarcado pelas hipóteses do artigo 927 do Código de
Processo Civil ("CPC"). Isso porque os julgados do STJ analisados não
são precedentes qualificados, os quais são formados pelo julgamento de casos
repetitivos (artigo 928 do CPC) e o de incidente de assunção de competência
(artigo 947 do CPC). Diante disso, em São Paulo muitos julgadores têm seguido o
disposto no Enunciado VI do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial
do TJSP.
A jurisprudência não é uníssona no TJSP e
demonstra uma fragilidade e insegurança jurídica aos credores e devedores, pois
ainda que o STJ tenha se posicionado pela extraconcursalidade do crédito mesmo
nos casos em que a garantia fiduciária é prestada por terceiro, é possível e
recomendável se entender pela concursalidade dos referidos créditos.
Reflexos práticos e críticas ao
entendimento adotado pelo STJ
Ao longo dos anos o STJ tem desempenhado
papel central na consolidação da jurisprudência em matéria de insolvência
empresarial. Mas, quando se trata do crédito garantido por alienação fiduciária
prestada por terceiro, a Corte parece ter ultrapassado os limites da lei e da
lógica interpretativa.
Como dito acima, o TJSP no passado
construiu sólida posição no sentido de que tais créditos devem ser submetidos à
recuperação judicial. E a razão é simples: o §3º do art. 49 da LRF foi pensado
para proteger o credor que recebeu garantia fiduciária diretamente do devedor
em recuperação, e não para criar mais um credor supostamente blindado da
recuperação judicial apenas porque o bem alienado fiduciariamente que garante
seu crédito pertence a terceiro.
A justificativa do STJ, no sentido de
preservar a eficácia da garantia fiduciária e a segurança do sistema de
crédito, não se sustenta. Na verdade, o efeito é justamente o inverso. Isso
porque o credor originário detentor da garantia deverá primeiro excuti-la e se
pagar com o produto da alienação do bem garantido. A consequencia desse
pagamento perante o terceiro garantidor é a sub-rogação deste no crédito, e sua
habilitação na recuperação com um crédito quirografário (diante da utilização
da garantia para pagamento do credor originário). Na prática, essa dinâmica
acaba desprotegendo os credores, que se veem tolhidos de qualquer participação
na recuperação judicial. Explica-se: na grande maioria das vezes a excussão da
garantia fiduciária até a satisfação do credor originário leva mais tempo do
que a negociação e votação de um plano de pagamento aos credores em Assembleia
Geral. Logo, a tendência é a de que a coletividade dos credores aprove um plano
antes que o terceiro garantidor, após se sub-rogar no crédito, possa se
apresentar nos autos e exercer seus direitos de voz e voto em assembleia.
Isso não aconteceria caso os credores
originários já fossem classificados como quirografários na recuperação
judicial, e exercessem seus direitos na construção de um plano coletivo de
pagamento juntamente os com os devedores, num sistema colaborativo sustentado
na teria dos jogos. Ainda que posteriormente tal credor excuta a garantia e se
pague no curso da recuperação, o terceiro garantidor que pagou o crédito se
sub-rogaria num direito de crédito que foi ativamente negociado pelo credor
originário (isso sem considerar a possibilidade de o próprio terceiro
garantidor já participar diretamente da assembleia no lugar do credor
originário, por ser detentor de um crédito existente, ainda que ilíquido, no
momento do ajuizamento, mas essa discussão fica para um futuro artigo).
Ou seja, o resultado prático da aplicação
desse entendimento do STJ é perverso: representa o total alijamento do credor
do esquema recuperacional, e a possibilidade de ser arrastado/dragado pela
vontade de uma maioria, sem poder exercer qualquer direito de voz e voto.
Mais grave: o STJ legitima uma
interpretação expansiva de exceção legal. Ora, se o legislador não distinguiu
expressamente, caberia ao intérprete atuar com cautela, respeitando a
teleologia do instituto. Ao inverter essa lógica, a Corte contribui para enfraquecer
a função social da recuperação e criar insegurança jurídica no sistema.
O discurso da segurança jurídica, da
proteção ao crédito e, especialmente, da salvaguarda do instituto da garantia
fiduciária não pode ser utilizado como cortina de fumaça para desvirtuar os
objetivos da LRF. A concursalidade deveria ser a regra; a extraconcursalidade,
a exceção. Estender privilégios sem previsão normativa é uma hermenêutica
perigosa, que mina a própria credibilidade da recuperação judicial.
Para além disso, esse entendimento impacta
diretamente os próprios credores fiduciários, que ficam impedidos de participar
da votação do plano de recuperação judicial. Isso porque, quando o valor obtido
com a excussão do bem não é suficiente para quitar integralmente a dívida, o
saldo remanescente deve ser habilitado na recuperação como crédito
quirografário4. Ou seja, ao final, esse crédito acaba sendo incluído e
reestruturado no processo de recuperação judicial.
Em suma: no tema da concursalidade do
crédito fiduciário de terceiro, o STJ precisa rever o passo. Afinal, quando a
exceção se transforma em regra, a recuperação judicial deixa de ser instrumento
de reestruturação e se converte em palco de privilégios (neste caso, ao
contrário do que a aparência inicial sugere, privilégio equivocado ao próprio
devedor, já que o credor terá seus direitos de voz e voto tolhidos na
recuperação).
1 Recurso Especial nº 2.146.960/SP
(julgado em 9.12.2024) e do Agravo em Recurso Especial nº 2.315.153/SC (julgado
em 25.2.2025)
2 (i) Apelação Cível nº
1006421-10.2022.8.26.0554; Relator J.B. Paula Lima; 1ª Câmara Reservada de
Direito Empresarial; Data do Julgamento: 15.10.2024;
(ii) Agravo de Instrumento nº
2093218-14.2024.8.26.0000; Relator Rui Cascaldi; 1ª Câmara Reservada de Direito
Empresarial; Data do Julgamento: 19.8.2024;
(iii) Agravo de Instrumento nº
2117394-91.2023.8.26.0000; Relator Ricardo Negrão; 2ª Câmara Reservada de
Direito Empresarial; Data do Julgamento: 27.7.2023;
(iv) Agravo de Instrumento nº
2289596-45.2021.8.26.0000; Relator Grava Brazil; 2ª Câmara Reservada de Direito
Empresarial; Data do Julgamento: 12.4.2022;
(v) Agravo de Instrumento nº
2047161-06.2022.8.26.0000; Relator Cesar Ciampolini Neto; 1ª Câmara Reservada
de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 15.6.2022;
3 (i) Agravo de Instrumento nº
2359243-25.2024.8.26.0000; Relator Maurício Pessoa; 2ª Câmara Reservada de
Direito Empresarial; Data do Julgamento: 10.2.2025;
(ii) Agravo de Instrumento nº
2171628-23.2023.8.26.0000; Relator Natan Zelinschi de Arruda; 2ª Câmara
Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 26.9.2023;
(iii) Agravo de Instrumento nº
2081920-59.2023.8.26.0000; Relator Jorge Tosta; 2ª Câmara Reservada de Direito
Empresarial; Data do Julgamento: 20.8.2023;
4 Conforme Recurso Especial nº
1.933.995/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
25.11.2021.]
Fonte: Migalhas