RESUMO
A responsabilidade
civil de notários e registradores foi objeto de apreciação e definição de seus
parâmetros interpretativos pelo Supremo Tribunal Federal, na Repercussão Geral
– Tema 777 - Recurso Extraordinário nº 842.846/SC, envolvendo recurso do Estado
de Santa Catarina, que restou responsabilizado pelo erro cometido pelo oficial
de registro, por ter grafado incorretamente o nome da pessoa falecida em uma
certidão de óbito, impossibilitando o recebimento da pensão pelo viúvo perante
o Instituto Nacional de Seguridade Social. Discutiu-se no julgado a incidência
dos artigos 37, § 6º, e 236 da Constituição Federal, especialmente quanto à
regulamentação da matéria pelo artigo 22 da Lei nº 8.935/1994, acerca da
natureza privada da atuação dos notários e registradores, o que autorizaria sua
equiparação às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos,
a responder diretamente por seus atos lesivos. O estudo das teorias da
responsabilidade estatal, seus elementos, o regime jurídico incidente sobre a
atividade notarial e registral, sua responsabilização civil e as consequências
jurídicas emanadas do posicionamento do Supremo Tribunal Federal foram
abordados neste trabalho, voltado, especialmente, a verificar a tese aprovada e
as razões que orientaram a decisão da Corte Suprema.
Palavras-chave: Responsabilidade
civil de notários e registradores. Fundamento. Supremo Tribunal Federal. RE
842.846/SC.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Notários e registradores. 3.
Natureza jurídica da atividade notarial e registral. 4. A responsabilidade
civil do Estado e suas implicações na definição da responsabilidade de notários
e registradores: teorias, natureza e elementos caracterizadores. 5. Noção sobre
responsabilidade solidária, subsidiária, direta e regressiva. 6. Interpretação
dos artigos 37, § 6º, e 236 da Constituição Federal. Constitucionalidade do
art. 22 da Lei nº 8.935/1994. A tese fixada pelo STF no RE 842.846/SC,
Repercussão Geral – Tema 777. 7. Repercussão prática da decisão do Supremo
Tribunal Federal e a desjudicialização. 8. Conclusão. Referências.
1.
INTRODUÇÃO
A
responsabilidade civil dos notários e registradores teve seus parâmetros
interpretativos definidos no Recurso Extraordinário nº 842.846/SC, em que
reconhecida a Repercussão Geral – Tema 777, julgado pelo Supremo Tribunal
Federal, em 27 de fevereiro de 2019.
Neste
trabalho serão verificados os fundamentos que orientaram a decisão da Corte
Suprema, examinando a tese fixada e a motivação das suas conclusões acerca da
constitucionalidade do artigo 22 da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, na
redação conferida pela Lei nº 13.286/2016, em face dos artigos 37, § 6º, e 236
da Constituição Federal.
Além
de colocar as questões jurídicas relevantes sobre o enquadramento das condutas
lesivas cometidas por notários e registradores no exercício de suas funções, procurou-se
identificar a natureza, objetiva ou subjetiva, e o caráter da responsabilidade,
mais especificamente quanto à possibilidade de virem a responder por seus atos
de forma direta, subsidiária, solidária ou regressiva. Também serão examinadas
as razões que motivaram a fixação da tese, no que se refere à responsabilidade
civil do Estado.
A
questão a ser colocada já no início deste trabalho diz respeito à forma como
notários e registradores desempenham suas atividades, com gestão das
serventias, em caráter privado, enquanto que os serviços, propriamente ditos,
são de natureza pública. Daí a importância da definição jurídica de sua
responsabilidade civil frente aos particulares, que dependem dos serviços
notariais e registrais para inúmeros atos e negócios jurídicos, inclusive
muitos que outrora eram acessíveis apenas pela via judicial.
2.
NOTÁRIOS
E REGISTRADORES
Os notários e registradores são profissionais cuja
atividade possui assento constitucional, onde está expressamente referido o caráter
privado em que exercem suas atribuições, por delegação do poder público,
mediante ingresso por concurso público de provas e títulos, conforme artigo 236
da Constituição Federal, que estabelece:
Art. 236. Os serviços notariais e de registro são
exercidos em caráter privado, por delegação do poder público.
§1º Lei regulará as atividades, disciplinará a
responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de
seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
§2º Lei federal estabelecerá normas gerais para
fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e
de registro.
§3º O ingresso na atividade notarial e de registro
depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer
serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção por
mais de seis meses.
Tem importância, neste estudo, direcionado a
averiguar a responsabilidade civil dos notários e registradores no desempenho
de suas funções, a Lei nº 8.935/1994,
que define tais serviços como de organização técnica e administrativa
destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos
atos jurídicos (artigo 1º), exercidos por profissionais do direito dotados de
fé pública (artigo 2º), aos quais são conferidas diversas atribuições. Estão
incluídos como titulares dos respectivos serviços, nos termos do artigo 5º da
mencionada lei, os tabeliães de notas, os tabeliães e oficiais de registro de
contratos marítimos, tabeliães de protestos de títulos, oficiais de registros
de imóveis, oficiais de registros de títulos e documentos e civis das pessoas
jurídicas, oficiais de registros civis das pessoas naturais e de interdições e
tutelas e oficiais de registro de distribuição.
Aos notários compete (artigos 6º e 7º): lavrar
escrituras e procurações, públicas; lavrar testamentos públicos e aprovar os
cerrados; lavrar atas notariais; reconhecer firmas e autenticar cópias. Formalizam
a vontade das partes e redigem os instrumentos adequados, conservando os
originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo. Aos Tabeliães de Protesto
de Títulos compete (artigo 11): protocolar os documentos de dívida, para prova
do descumprimento da obrigação; intimar os devedores dos títulos para
aceita-los, devolvê-los ou pagá-los, sob pena de protesto; receber o pagamento
dos títulos protocolizados, dando quitação; cancelar o protesto e expedir
certidões. Aos oficiais de registro de imóveis, de títulos e documentos e civis
das pessoas jurídicas, civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas
compete a prática dos atos relacionados na legislação civil pertinente aos
registros públicos (art. 12).
Como visto, as atividades notariais e registrais
fazem parte da rotina das pessoas físicas e jurídicas, pois, em algum momento
de suas vidas, terão de utilizar os serviços dessa natureza, desde o seu
nascimento até à morte. Determinados atos, como inventários e partilhas,
separações e divórcios consensuais, união estável, união homoafetiva e uma gama
de outros, saíram da seara judicial para serem realizados perante as serventias
extrajudiciais, por meio da denominada desjudicialização.
Com a crescente demanda dos serviços, as serventias
extrajudiciais tiveram que ampliar suas estruturas, inclusive sob o aspecto
tecnológico e de recursos humanos qualificados, potencializando os riscos pelo
exercício da atividade, que aumentaram, na mesma proporção da demanda que lhes
é atribuída. Exemplo disso é a emissão de documentos digitais, inclusive em
relação a imóveis, com a criação de plataformas digitais, como é exemplo a
Central de Registro de Imóveis do Rio Grande do Sul – CRI-RS, que permite
consultar registros e informações sobre imóveis, pela internet[1].
A atividade configura, sem dúvida, serviço público,
prestado em caráter privado, conforme disciplina constitucional e legal, mas
que atrai e envolve, no que se refere à responsabilização civil, o próprio
Estado, fiscalizador da atividade, por meio do Poder Judiciário.
Assim, cabe investigar quem deve responder pelos
danos que vierem a ser praticados pelos notários e registradores no exercício
de suas funções.
3. NATUREZA
JURÍDICA DA ATIVIDADE NOTARIAL E REGISTRAL
Os
serviços notariais e de registro receberam tratamento específico no artigo 236
da Constituição Federal, que estabeleceu, expressamente, ser a atividade
exercida em caráter privado, por delegação do poder público, ficando ao encargo
da lei a respectiva regulamentação, inclusive no que se refere à
responsabilidade civil e criminal, reservando a fiscalização de seus atos pelo
Poder Judiciário.
Sobre
a responsabilidade civil de tais agentes delegados, no desempenho de suas
funções, surgiram discussões quanto à aplicação do artigo 37, § 6º, da
Constituição Federal, sob o fundamento de que os atos por eles praticados seriam
de agentes públicos, tendo os prejudicados movido ações de responsabilização
diretamente contra o poder público. Ao apresentar sua defesa, o Estado, por sua
vez, enalteceu a natureza privada da atividade notarial e registral, conforme
previsão do art. 236 da Constituição Federal, pleiteando, com isso, sua
ilegitimidade passiva para a causa e, no mesmo diapasão, referindo que a
matéria, ainda que se pretendesse amoldá-la ao artigo 37, § 6º, da Constituição
Federal, deveria ser pela inclusão dos notários e registradores no conceito de
prestadores de serviços públicos que respondem pelos seus atos, diretamente. O
debate chegou ao Supremo Tribunal Federal, que, como será examinado a seguir,
decidiu pela fixação da seguinte tese:
O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos
tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem
dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos
de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.
Portanto,
inserem-se, conforme o entendimento atual do Supremo Tribunal Federal, na
categoria de agentes públicos. São particulares que atuam em colaboração, pois
desempenham serviços públicos, sujeitos à fiscalização estatal, pelo Poder
Judiciário. Não se cuida da delegação de que trata o artigo 175 da Constituição
Federal, destinada às pessoas jurídicas de direito privado, mas de serviço
próprio do Estado, submetido a regime de direito público, conforme artigo 236
da mesma Carta Política. A finalidade desses serviços é de conferir
autenticidade, segurança jurídica, eficácia e publicidade aos assentos, atos,
negócios e declarações dos registros e/ou das notas, todos com fé pública (MEIRELLES,
2018, pp. 534-535).
O
artigo 236 da Constituição Federal foi regulamentado pela Lei nº 8.935, de 18
de novembro de 1994, que estabeleceu a natureza dos serviços notariais e
registrais como sendo de organização técnica e administrativa destinados a
garantir publicidade, autenticidade, segurança e eficiência dos atos jurídicos
(artigo 1º), bem como que os notários, ou tabeliães, e oficiais de registro, ou registradores, são profissionais
do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade
notarial e de registro (artigo 2º).
As
atribuições e competências estão arroladas na mesma lei (artigos 6º a 13),
sendo que há tratamento específico da responsabilidade civil, onde consta que
responderão pelos danos que eles e seus prepostos causarem a terceiros, na
prática de atos próprios da serventia. Cuida-se do artigo 22, que sofreu
alterações ao longo do tempo. A redação do dispositivo, em 1994, era a
seguinte:
Art. 22.
Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus
prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia,
assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos
prepostos.
Posteriormente,
a Lei n° 13.137/2015 conferiu-lhe outra redação:
Art. 22. Os notários e oficiais
de registro, temporários ou permanentes, responderão pelos danos que eles e
seus prepostos causem a terceiros, inclusive pelos relacionados a direitos e
encargos trabalhistas, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos
primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos
prepostos.
A redação atual, comandada pela Lei nº
13.286/2016, é esta:
Art. 22. Os notários e oficiais de registro são civilmente
responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou
dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que
autorizarem, assegurado o direito de regresso.
Tanto a redação originária quanto a
alteração do artigo 22 mencionado, em 2015, por uma interpretação literal,
levavam a considerar que a discussão de dolo ou culpa estava a se referir à
ação regressiva do notário ou registrador em relação a seus prepostos, enquanto
que eles próprios teriam responsabilidade civil direta e objetiva. No entanto,
após já em curso a discussão da matéria perante o Supremo Tribunal Federal,
houve a alteração legislativa de 2016, atualmente vigente, que incluiu
expressamente o exame da culpa ou dolo em relação aos notários e registradores,
pelo que ficou caracterizada a responsabilidade subjetiva. E, nesse sentido,
debateu-se na Corte a constitucionalidade do dispositivo legal, haja vista a
natureza privada na gestão das serventias extrajudiciais pelos respectivos
titulares que poderiam, por isso mesmo, responder diretamente pelos seus atos.
Tal não vingou e, no exame conjunto das disposições constitucionais dos artigos
37, § 6º, e 236, da Constituição Federal, o Estado foi considerado diretamente
responsável e os tabeliães e registradores apenas de forma regressiva, caso
comprovado o dolo ou culpa na sua atuação.
A
previsão de responsabilidade subjetiva está contida também no artigo 28 da Lei
nº 6.015/1973, Lei dos Registros Públicos, relativamente aos Oficiais, e no
artigo 38 da Lei nº 9.492/97, quanto aos Tabeliães de Protesto de Títulos.
Ambos os casos, seja de notários e registradores, seja de tabeliães de protesto
de títulos, compõem a classe notarial, não havendo razões para diferenciação de
tratamento, de modo que estão submetidos todos ao regime de responsabilidade
subjetiva, a partir do atual entendimento do Supremo Tribunal Federal, que
dirimiu a questão e considerou válida a norma do mencionado artigo 22 da Lei nº
8.935/1994, na redação conferida pela Lei n°13.286/2016.
4. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO
ESTADO E SUAS IMPLICAÇÕES NA DEFINIÇÃO DA RESPONSABILIDADE DE NOTÁRIOS E
REGISTRADORES: TEORIAS, NATUREZA E ELEMENTOS CARACTERIZADORES
O
Estado, tal como os particulares, ao exercer suas funções, diretamente ou por
prestadores de serviços públicos, pratica atos, lícitos ou ilícitos, que podem
ocasionar danos a terceiros.
A
fonte da responsabilidade civil do Estado encontra-se no § 6º do artigo 37 da
Constituição Federal, que estabelece serem as pessoas jurídicas de direito
público e as de direito privado prestadoras de serviço público responsáveis
pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado
o direito de regresso contra o responsável em casos de dolo ou culpa.
Não
é objeto deste trabalho discorrer com profundidade sobre as teorias da responsabilidade
civil do Estado, a não ser uma breve abordagem.
Na
teoria da culpa (PEREIRA, 1993, p. 130) o dever de reparação por parte do
Estado exige seja apurada a culpa do agente.
Somente em caso afirmativo será possível deduzir que a entidade estatal
é responsável. Uma vez caracterizado o procedimento culposo do funcionário, do
servidor, do agente, ficará definida a responsabilidade do Estado.
A
teoria do risco integral é a mais onerosa para o poder público, pois o obriga a
responder em qualquer situação, sem possibilidade de alegar excludentes, como
se o Estado fosse um segurador universal. Pela teoria do risco integral o
Estado fica obrigado a indenizar todo e qualquer dano, desde que envolvido no
respectivo evento. Não se indaga, portanto, a respeito da culpa da vítima na
produção do evento danoso, nem se permite qualquer prova visando elidir essa
responsabilidade. Basta, para caracterizar a obrigação de indenizar, o simples
envolvimento do Estado no evento (GASPARINI, 2008, p. 1.031).
O
direito brasileiro adota a teoria do risco administrativo, pela qual o Estado e
as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos
respondem independente de discussão da culpa, ou seja, consagra a teoria da
responsabilidade objetiva do Estado. Presentes o fato do serviço e o nexo de
causalidade entre o fato e o dano ocorrido, nasce para o poder público a
obrigação de indenizar. (ALEXANDRINO; PAULO, 2019). Ao terceiro que sofreu o
dano não incumbe comprovação de qualquer espécie de culpa do Estado ou do
agente público. A administração é que, na sua defesa, poderá, se for o caso,
visando a afastar ou a atenuar a sua responsabilidade, comprovar – e o ônus da
prova é dela – a ocorrência de algumas das chamadas excludentes. Embora haja
divergências na doutrina, são usualmente aceitas como excludentes a culpa
exclusiva da vítima, a força maior e o caso fortuito. Caso a administração
pública demonstre que houve culpa recíproca – isto é, dela e do particular,
concomitantemente -, a sua obrigação de indenizar será proporcionalmente
atenuada.
Na
responsabilidade civil objetiva não se discute dolo ou culpa, enquanto que na
responsabilidade subjetiva deve-se demonstrar a presença de tais elementos.
Esta última é empregada no Código Civil, segundo o qual aquele que, por ação ou
omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a
outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito (artigo 186).
A
responsabilidade objetiva independe de discussão da culpa, satisfazendo-se com
a presença de três elementos: conduta, nexo de causalidade e resultado danoso.
Ela é empregada tanto para a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito
público ou das privadas que prestam serviços públicos, como também em algumas
situações específicas entre particulares.
O
artigo 37, § 6º, da Constituição Federal prevê duas relações de
responsabilidade: a) a do poder e seus delegados na prestação de serviços
públicos perante a vítima do dano, de caráter objetivo, baseada no nexo causal;
b) a do agente causador do dano, perante a Administração ou empregador, de
caráter subjetivo, calcada no dolo ou culpa (MEDAUAR, 2001, p. 432).
A
discussão sobre dolo ou culpa do agente fica restrita à ação de regresso, que
se estabelece entre o ente público e seu agente. A sociedade tem interesse na
reparação igualitária dos prejuízos e encargos sociais e esta seria a razão de
atribuir ao Estado e às pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos a
correspondente responsabilização, advinda do mero risco que a atividade por
eles exercida envolve, isto é, mesmo que a atuação estatal seja lícita e que a
prestação do serviço público tenha sido regular, o simples fato de ocorrer um
dano específico a um terceiro na execução da atividade implicará a obrigação de
indenizá-lo pelo prejuízo sofrido (ALEXANDRINO; PAULO, 2019, p. 375).
Importa
considerar que o termo agente público é amplo, englobando todos aqueles que
atuam e obrigam o Estado, enquanto que pessoas jurídicas de direito privado
prestadoras de serviço público são aquelas que agem em colaboração, delegação,
concessão, prestando serviços em caráter privado, mas de natureza pública, ou
seja, sua atuação é privada, mas o serviço é público.
A
polêmica a respeito da aplicação da teoria da responsabilidade civil objetiva
para o caso das condutas omissivas pairou durante muito tempo (DI PIETRO, 2016,
pp. 801-802). Alguns incluíam a omissão no nexo de causalidade, outros a
posicionavam como hipótese subjetiva. Prevaleceu
a tese de que o artigo 37, § 6º, da Constituição Federal não faz distinção entre
conduta omissiva ou comissiva, conforme ficou assentado no RE 841.526 – Tema
592 de Repercussão Geral, j. 30/3/2016, DJe 1º/8/2016. Assim, o entendimento
atual é de que, independentemente da natureza da conduta, será caso de
responsabilidade civil objetiva, pela qual não se investiga a culpa do agente,
bastando a configuração dos seus elementos caracterizadores, a saber: conduta,
nexo de causalidade e resultado danoso.
Em
determinadas situações a responsabilidade do Estado poderá ser atenuada ou
excluída, caso o lesado seja culpado, parcial ou integralmente pelo resultado
danoso, ou se for hipótese de caso fortuito ou força maior.
Importante
ressaltar que a Corte poderia ter caminhado em qualquer dos sentidos abordados,
ou seja, aplicar a teoria da responsabilidade objetiva em relação aos notários
e registradores, afastando a responsabilidade do Estado ou considerando este
solidária ou subsidiariamente responsável. Tal não ocorreu, optando, por
maioria, por obrigar objetivamente o Estado e subjetivamente, apenas na via
regressiva, os tabeliães e registradores, cuja discussão de sua culpa deverá
ocorrer em ação própria, entre o Estado e o agente. A opção foi de obrigar
diretamente o Estado, sob o fundamento de que o ônus da atividade, exercida sob
fiscalização do Poder Judiciário, deve ser suportado por todos.
5. NOÇÃO SOBRE
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA, SUBSIDIÁRIA, DIRETA E REGRESSIVA
A
responsabilidade solidária ocorre quando há mais de um obrigado e todos
respondem pela integralidade da obrigação advinda do dever de indenizar (artigo
275 do Código Civil). Já, na subsidiária, há o obrigado que responde diretamente
e, se não solver a obrigação, poderá o credor voltar-se contra o responsável
subsidiário, em caráter secundário. Na
regressiva, quem suportou a indenização, no caso o Estado, deverá, uma vez
comprovado o dolo ou a culpa de seu agente, acioná-lo a responder pela
reparação a que deu causa.
A
responsabilidade é primária ou direta quando atribuída diretamente à pessoa
física ou à pessoa jurídica a que pertence o autor do dano. Será subsidiária a
responsabilidade quando sua configuração depender da circunstância de o
responsável primário não ter condições de reparar o dano por ele causado
(CARVALHO FILHO, 2018, p. 613).
A
doutrina vinha discutindo a responsabilidade de notários e registradores, com
controvérsia nos entendimentos para considerar, ao contrário do posicionamento
do Supremo Tribunal Federal, que a) poderiam ser acionados diretamente, como
agentes privados, ocasião em que o particular lesado deveria demonstrar a sua
culpa ou dolo e o Estado somente responderia subsidiariamente; b) tanto Estado
quanto notários e registradores poderiam ser acionados diretamente, ficando a
critério do particular escolher a quem dirigir a demanda reparatória; c) a ação
seria dirigida apenas contra os notários e registradores, sendo estes os únicos
responsáveis; d) apenas o Estado responderia diretamente e os notários e
registradores somente deveriam responder se comprovada sua atuação dolosa ou
culposa, na via de regresso.
Há
autores compreendendo que, em se tratando de danos causados por titular de
cartório, a responsabilidade do Estado é subsidiária – STJ, Resp. 1.087.862,
Rel. Min. Herman Benjamin -, pois os serviços dos notários são exercidos por
delegação estatal e a responsabilidade se equipara à das pessoas jurídicas de
direito privado prestadoras de serviços públicos (FARIAS, ROSENVALD E BRAGA
NETO, 2018, p. 637).
Seria
injustificável os notários e registradores, que possuem receita própria e gerem
as respetivas serventias, ficarem imunes de arcar com os prejuízos causados por
seus atos. Devem ser responsabilizados solidariamente com o Estado, consoante o
art. 37, § 6º, da Constituição Federal (RIZZARDO, 2019, p. 357).
O
particular lesado poderia mover a ação diretamente contra o Estado,
atribuindo-lhe responsabilidade objetiva, ou contra o notário ou registrador,
também diretamente, mas neste caso teria de discutir a culpa ou dolo
(GONÇALVES, p. 314). Importante considerar que o responsável deve ser o
tabelião à época dos fatos e o tabelionato não detém personalidade jurídica,
sendo a responsabilidade pessoal do titular da serventia.
Loureiro
(2018, pp. 343-345) relata que a doutrina e a jurisprudência não são uniformes
quanto à legitimidade passiva do Estado. A orientação recente do Superior
Tribunal de Justiça inclina-se pela responsabilidade única e exclusiva do
notário, uma vez que, conforme o art. 236 da Constituição, os serviços
notariais são exercidos em caráter privado e por sua conta e risco.
Para
uma corrente a responsabilidade do Estado deve ser subsidiária, ou seja, quando
o notário não dispõe de recursos para reparar o dano o particular poderá buscar
a reparação do ente público, ocasião em que a ação será ajuizada primeiro
contra o agente e, resultando infrutífera, contra o Estado.
A
temática também propicia solução mais abrangente, para permitir que a ação
possa ser movida desde logo contra os dois, Estado e notário, em solidariedade.
Em
importante estudo, realizado anteriormente à decisão no RE 842.846/SC (FACCHINI
NETO, 2017, pp. 347-398) foi investigada a possibilidade de a vítima, por opção
sua, ingressar com ação indenizatória diretamente contra o agente público que
tenha agido com dolo ou culpa, isolada ou conjuntamente com o ente público, ou
se, ao contrário, deva ser movida somente contra este. Concluiu-se, na ocasião,
que a vítima poderá optar entre acionar o Estado, ambos ou apenas o agente
público. No entanto, em julgado posterior, a Corte Suprema fixou o entendimento
de que a ação deverá ser movida apenas e diretamente contra o Estado,
assegurado o direito de regresso contra o causador do dano (RE 1027633 – Tema
940 de Repercussão Geral, j. 14/08/2019), fixando a seguinte tese: A teor do
disposto no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados
por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de
direito privado, prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima o autor
do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável, nos casos de
dolo ou culpa.
O
artigo 37, § 6º, da Constituição Federal incide quanto aos atos de notários e
registradores, mas deve ser interpretado em conjunto com as disposições do artigo
236 da mesma Carta Política, que trata especificamente sobre a atuação dos delegatários
das serventias extrajudiciais. O tema foi objeto do recente entendimento da
Corte Suprema, que conferiu validade e eficácia à legislação infraconstitucional
e manteve o posicionamento que vinha se firmando, no sentido de afastar a
possibilidade de o notário ou registrador ser diretamente acionado e figurar no
polo passivo da ação indenizatória. O Estado foi considerado diretamente
responsável e deverá ingressar com a ação de regresso apenas ao final. Nesta
demanda de regresso é que será discutido se houve dolo ou culpa do notário ou
registrador, nos termos do artigo 22 da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994.
6. INTERPRETAÇÃO DOS ARTIGOS
37, § 6º, e 236 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 22 DA LEI
Nº 8.935/1994. A TESE FIXADA PELO STF NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 842.846/SC,
REPERCUSSÃO GERAL - TEMA 777.
O
fato que ensejou o debate da matéria na Repercussão Geral – Tema 777 – RE
842846/SC diz respeito aos prejuízos causados pela falha dos serviços, por
suposto erro do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais da Comarca de
São Carlos – SC, quando da elaboração de certidão de óbito da esposa do viúvo
autor da ação indenizatória, por ter sido grafado incorretamente o nome de sua
esposa falecida e ocasionado a negativa do Instituto Nacional do Seguro Social
ao pagamento do benefício previdenciário. A ação indenizatória foi proposta apenas
em face do Estado de Santa Catarina, que se defendeu alegando sua ilegitimidade
passiva para a causa, considerando que o titular da serventia extrajudicial
deveria ser responsabilizado pelos prejuízos alegados, já que atua em caráter
privado, conforme artigo 236 da Constituição Federal e art. 22 da Lei nº
8.935/94. O Estado de SC levou a discussão até o Supremo e obteve o
reconhecimento da repercussão geral, pela relevância do tema. Na sequência o RE
842.846/SC foi desprovido, para manter a legitimidade passiva e consequente
condenação do Estado a reparar os prejuízos respectivos, como também para
afastar a possibilidade de denunciação à lide do registrador responsável pelo
ato e admitir seja demandado em ação de regresso, caso demonstrada sua conduta
dolosa ou culposa, nos termos estabelecidos pelo artigo 37, § 6º, da
Constituição Federal.
A
matéria tem suas peculiaridades e divergências interpretativas. Para o Ministro
Luiz Fux, relator do acórdão (RE 842.846/SC, pp. 13 e 14), o cenário jurisprudencial
é de entendimentos díspares sobre o tema, o que orientou a acolhida da
repercussão geral, com o objetivo de estabilização de uma única interpretação
viável do alcance dos artigos 37, § 6º e 236, § 1º, da Constituição Federal,
cuja jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça vinha se firmando no sentido da
responsabilidade do notário como sendo direta e objetiva e apenas subsidiária
do ente estatal, enquanto no Supremo Tribunal Federal há precedentes de que a
responsabilidade do Estado é considerada objetiva e direta, assegurado o
direito de regresso nos casos de dolo e culpa.
A
solução dada à matéria pela Corte Suprema enalteceu a incidência do regime
público de prestação dos serviços, embora exercidos em caráter privado, como
forma de proteção social. Da ementa do acórdão no RE 842.846/SC extrai-se o
seguinte:
1.
Os
serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por
delegação do Poder Público. Tabeliães e registradores oficiais são particulares
em colaboração com o poder público que exercem suas atividades in nomine
do Estado, com lastro em delegação prescrita expressamente no tecido
constitucional (art. 236, CRFB/88).
2.
Os
tabeliães e registradores oficiais exercem função munida de fé pública, que
destina-se a conferir autenticidade, publicidade, segurança e eficácia às
declarações de vontade.
3.
O
ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público e os
atos de seus agentes estão sujeitos à fiscalização do Poder Judiciário,
consoante expressa determinação constitucional (art. 236, CRFB/88). Por
exercerem um feixe de competências estatais, os titulares de serventias
extrajudiciais qualificam-se como agentes públicos.
4.
O
Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores
oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado
o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena
de improbidade administrativa. Precedentes: RE 209.354 AgR, Rel. Min. Carlos
Veloso, Segunda Turma, DJe 16/4/1999; RE 551.894 AgR, Rel. Min. Ayres Britto,
Segunda Turma, DJe de 22/9/2011; RE 551.156 AgR, Rel. Min. Ellen Gracie,
Segunda Turma, DJe de 10/3/2009; AI 846.317 AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia,
Segunda Turma, DJe de 28/11/13 e RE 788.009 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira
Turma, julgado em 19/8/2014, DJe 13///10/2014.
5.
Os
serviços notariais e de registro, mercê de exercidos em caráter privado, por
delegação do Poder Público (art. 236, CF/88), não se submetem à disciplina que
rege as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos.
É que esta alternativa interpretativa, além de inobservar a sistemática da
aplicabilidade das normas constitucionais, contraria a literalidade do texto da
Carta da República, conforme a dicção do art. 37, § 6º, que se refere a “pessoas
jurídicas” prestadoras de serviços públicos, ao passo que notários e
tabeliães respondem civilmente enquanto pessoas naturais delegatárias de
serviço público, consoante disposto no art. 22 da Lei nº 8.935/94.
6.
A
própria constituição determina que “a lei regulará as atividades,
disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de
registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder
Judiciário” (art. 236, CRFB/88), não competindo a esta Corte realizar uma
interpretação analógica e extensiva, a fim de equiparar o regime jurídico da
responsabilidade civil de notários e registradores oficiais ao das pessoas
jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos (art. 37, § 6º,
CRFB/88).
7.
A
responsabilização objetiva depende de expressa previsão normativa e não admite
interpretação extensiva ou ampliativa, posto regra excepcional, impassível de
presunção.
8.
A
Lei 8.935/94 regulamenta o art. 236 da Constituição Federal e fixa o estatuto
dos serviços notariais e de registro, predicando no seu art. 22 que “os
notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os
prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos
substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito
de regresso. (Redação dada pela Lei nº 13.286, de 2016)”, o que configura
inequívoca responsabilidade civil subjetiva dos notários e oficiais de
registro, legalmente assentada.
9.
O
art. 28 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973) contém comando expresso
quanto à responsabilidade subjetiva de oficiais de registro, bem como o art. 38
da Lei 9.492/97, que fixa a responsabilidade subjetiva dos Tabeliães de
Protesto de Títulos por seus próprios atos e os de seus prepostos.
10.
Deveras, a atividade dos registradores de
protesto é análoga à dos notários e demais registradores, inexistindo discrímen que autorize tratamento
diferenciado para somente uma determinada atividade da classe notarial.
11.
Repercussão
geral constitucional que assenta a tese objetiva de que: o Estado
responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que,
no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de
regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de
improbidade administrativa.
12.
In casu, tratando-se de dano causado por registrador oficial no
exercício de sua função, incide a responsabilidade objetiva do Estado de Santa
Catarina, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo
ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.
13.
Recurso extraordinário
CONHECIDO e DESPROVIDO para reconhecer que o Estado responde, objetivamente,
pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas
funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o
responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade
administrativa. TESE: “O Estado responde, objetivamente, pelos atos
dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções,
causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável,
nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa”.
Os
serviços notariais e de registro são atividades desenvolvidas in nomine
do Estado, que albergam um feixe de competências públicas e, por isso mesmo,
sofrem incidências do regime jurídico de direito público. Tabeliães e notários
foram enquadrados na categoria de agentes públicos e, quando causam prejuízos,
comprometem o Estado.
O
Estado (MELO, 2019, p. 1.067) não tem vontade e nem ação, no sentido de
manifestação psicológica e vida anímica próprias, o que se dá pelos seres
vivos, no caso os seus agentes. Assim, o que estes fazem nestas condições é o
que o Estado fez.
No
voto do Ministro Luiz Fux, relator do acórdão no RE 842.846/SC, fls. 3/28, foi
ressaltado que os notários e registradores não podem ser equiparados às pessoas
jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, que respondem
objetivamente pelos danos que causarem a terceiros no desempenho de suas
atividades, conforme previsão do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal,
porquanto não são pessoas jurídicas e respondem civilmente enquanto pessoas
naturais delegatárias de serviço público, consoante disposto no artigo 22 da
Lei nº 8.935/1994.
Também
não se pode considerar que o risco administrativo daria abrigo à equiparação de
notários e registradores às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de
serviços públicos, pois poderiam ser responsabilizados por atos danosos que não
resultassem de sua conduta, mas de cumprimento de disposição legal ou
normativa. A adoção da teoria da responsabilidade objetiva em relação aos
notários e registradores, poderá ser injusta, uma vez que não permite a
investigação da culpa na execução do serviço. Em determinadas situações
praticam o ato seguindo o sistema normativo, elaborado pelo Poder Judiciário,
sendo descabida a atribuição do dever de indenizar (BENUCCI, 2013, p. 239). A
tese da responsabilidade objetiva poderia levar, assim, a situações em que a
indenização seja devida pelo notário e pelo registrador quando estes cumprem a
lei.
O
Supremo Tribunal Federal considerou que o art. 22 da Lei nº 8.935/94, na
redação conferida pela Lei nº 13.286/2016, está conforme o artigo 236, § 1º, da
Constituição Federal, que estabelece deva a lei dispor sobre a matéria, sendo
que esta foi expressa em considerar a responsabilidade subjetiva dos notários e
registradores, o que, por outro lado, reafirma a responsabilidade objetiva do
Estado, fundada no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, em relação aos
atos praticados pelos notários e registradores, incluídos estes na categoria de
agentes públicos, que prestam serviços em regime de colaboração com o poder
público.
Para
o Ministro Alexandre de Moraes (RE 842.446, p. 44), que acompanhou a maioria,
deve-se observar que o Estado responde objetivamente perante o prejudicado,
exceto se incidir alguma excludente de responsabilidade, como caso fortuito, força
maior ou culpa exclusiva da vítima. Neste cenário, o Estado terá direito de
regresso em face do agente causador do dano, na hipótese de ele ter agido com
culpa ou dolo.
O
regime jurídico da atividade notarial e registral não pode ser definido pela
simples interpretação literal do artigo 236 da Constituição Federal, sob pena de
incorrer em equívocos. Ao delegar os serviços notariais e de registro o Estado
confere aos titulares de serventias extrajudiciais, pessoas físicas, alçadas à
categoria de agentes públicos, o exercício de uma função pública, embora não
exerçam cargos públicos, por desempenharem suas atividades em regime privado,
em colaboração com o Estado. Não se deve, assim, confundir a natureza jurídica
da função exercida por notários e registradores, que é pública, com a forma de
prestação desses serviços, em caráter privado.
A
inclusão dos atos dos agentes notariais e registrais entre aqueles que obrigam
o poder público, retira, ao menos em parte, o ônus de que tais pessoas físicas,
no exercício de suas funções, venham a ser responsabilizadas diretamente pelo
particular que se sentir lesado. E a preocupação de que a responsabilidade
civil viesse a ser considerada objetiva e direta contra os notários e
registradores era bastante relevante[2],
pois teriam de responder diretamente às ações judiciais reparatórias.
As
vantagens da adoção da teoria da responsabilidade objetiva do Estado no caso de
atos praticados por notários e registradores no exercício da função são
consideradas importantes para preservar os direitos do particular, que fica
dispensado de demonstrar a culpa, bastando a
comprovação do dano, da atuação estatal e do nexo causal para declarar a
obrigação do Estado em indenizar. Evita que o agente público delegado responda
com seu patrimônio pessoal por atos praticados no desempenho de suas funções
públicas. Seria uma forma de evitar o temor de virem a produzir danos e serem
responsabilizados pessoalmente por sua atuação, sem que o interesse público
deixe de ser resguardado, considerando que, se houver culpa ou dolo do agente,
caberá ação regressiva (MACULAN, 2016, p.177).
Para
o Ministro Marco Aurélio (RE 842.846, fls. 65-66), que votou vencido, não se
pode adotar a regra do § 6º do artigo 37 para dizer que, sendo a atividade
desenvolvida por notário ou registrador, existe a responsabilidade objetiva do Estado.
Seria um passo demasiadamente largo, que impõe ao Estado responsabilidade que
pode ser objetiva, se houver ato comissivo, à margem do previsto no ditame
constitucional. Além do que a lei regulamentou, prevendo a apenas a responsabilidade
subjetiva do titular do cartório.
O
Ministro Edson Fachin (RE 842.846, fl. 61), embora tenha admitido a indenização
no caso concreto, considerando o lapso temporal transcorrido, entendeu, em
prospecção, ou seja, para casos futuros, que a responsabilidade deve ser do
titular do cartório, primária e objetiva, e do Estado também objetiva, mas
apenas em caráter subsidiário. Reconheceu inconstitucional, incidentalmente, as
expressões dolo e culpa do artigo 22 da Lei nº 13.286/2016, porque, ao examinar
os artigos 37, § 6º, e 236 da CF, os notários e registradores são agentes
públicos, por delegação, que gozam de independência gerencial administrativa e
financeira, remunerados de forma direta pelos serviços que prestam, não se
limitando ao teto remuneratório do funcionalismo público, nem às regras gerais
do funcionalismo para fins de aposentadoria, apresentando-se consentâneo com o
seu regime jurídico especial a responsabilidade objetiva e primária, tal qual
está constitucionalmente previsto para o Poder Público delegante.
Para
o Ministro Luís Roberto Barroso (RE 842.846, fls. 77-85) a jurisprudência do
Supremo deve ser aplicada para o caso concreto, ou seja, que a responsabilidade
primária e objetiva é do Estado, com direito de regresso em relação ao oficial
que tenha praticado o fato. No entanto, propôs a modificação do entendimento,
com efeitos prospectivos, uma vez que a regra especial do artigo 236 da
Constituição Federal retira a responsabilidade civil dos tabeliães e dos
registradores da regra geral do artigo 37, § 6º, e atribui ao legislador a
regulação da matéria. Este editou a Lei nº 8.935/1994, a qual, na redação
vigente desde 2016, exige a discussão de dolo ou culpa, sendo, portanto, de
natureza subjetiva. A ideia de que o Estado seja responsável por tudo, que tem
dinheiro para tudo, que o “público” não é de ninguém, é um equívoco, assim como
o seria conferir responsabilidade primária e objetiva ao Estado, em caso de
falha praticada pelo oficial cartorário. O Estado não pode ser demandado
isoladamente numa situação de falta imputável ao tabelião ou ao oficial
registrador. A responsabilidade do Estado, no caso, só pode ser subsidiária,
pressupondo a condenação do tabelião previamente.
Para
a Ministra Rosa Weber, a responsabilidade deve ser considerada como solidária entre
Estado e notários e registradores. Disse a Ministra (RE 842.846, fls. 90-97),
de modo que o particular lesado poderá demandar
apenas o Estado, nada impedindo que sejam demandados os dois, Estado e
tabelião, ou que a ação se volte exclusivamente contra o tabelião, considerando
ser hipótese de responsabilidade solidária, não de responsabilidade
subsidiária. Há responsabilidade direta, primária, e objetiva do Estado.
A
Ministra Cármen Lúcia (RE 842.846, fls. 112-114) ressaltou que a
responsabilidade deve ser do Estado, apesar de reconhecer a possibilidade de
revisitar ao tema. Referiu a Ministra que responsabilizar apenas o agente
notarial seria deixar o usuário do serviço em condição de maior dificuldade.
Ele não escolhe se pode ou não se valer do serviço. É obrigado a fazê-lo. O
Estado o obriga a valer-se do serviço e, quando o agente delegado erra, ele
teria a condição de ir apenas contra ele, com dificuldades maiores. Por isso,
entendeu possível ajuizar a ação contra
o Estado, que terá o regresso nos casos de dolo ou culpa. A responsabilidade do
Estado é objetiva.
O
Ministro Ricardo Lewandowski (RE 842.846, fl. 115) preconiza que os serviços
notariais e de registro são exercidos por delegação do Estado, que deve, em
última análise, ser o responsável, pois a atividade é submetida ao regime
público.
O
serviço é obrigatório para o particular, que não pode fugir de obter uma
certidão de nascimento, uma certidão de óbito, transferir o imóvel, munir-se de
uma escritura pública devidamente registrada. De considerar também que o
provimento de cargos cartorários se dá por concurso público e as atividades são
fiscalizadas pelo Judiciário, por meio de corregedorias especializadas dos
Tribunais de Justiça estaduais. Por isso, num primeiro momento, emerge a
responsabilidade objetiva do Estado e, num segundo momento, a responsabilidade
subjetiva do registrador ou do notário, desde que acionado regressivamente pelo
Estado.
Para
o Ministro Gilmar Mendes (RE 842.846, fl. 118) a responsabilidade é do Estado,
com a possibilidade de regresso em caso de dolo ou culpa.
Feitas
essas considerações acerca do tema, cabe, ao menos até que a matéria não seja
reexaminada pela Corte Suprema, responsabilizar civilmente o Estado pelos atos
lesivos praticados pelos notários e registradores, no exercício de suas
funções, pois considerados estes exercentes de serviços públicos, embora com
gestão privada, o que faz incidir o regime público de que trata o artigo 37, §
6º, da Constituição Federal, aplicado em harmonia com a regra especial do artigo
236 da mesma Carta Política, para, inclusive, validar a norma do artigo 22 da
Lei nº 8.935/1994, regulamentadora da matéria e que, quanto aos notários e
registradores, consagra a responsabilidade civil subjetiva e de regresso.
7. REPERCUSSÃO PRÁTICA DA
DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A DESJUDICIALIZAÇÃO
Apesar
de a Corte Suprema ter reafirmado sua jurisprudência quanto ao tema, para
aplicar a teoria da responsabilidade civil objetiva em relação ao Estado e considerar que os
notários e registradores somente responderão se tiverem agido com dolo ou
culpa, em ação de regresso, deve-se considerar que esse posicionamento é
bastante significativo, pois havia divergências consideráveis que se inclinavam
em sentido contrário, tanto que houve a repercussão geral e a decisão adotada
pela Corte não foi unânime. De qualquer forma, fixada a tese, notários e registradores
deverão responder por eventuais danos que vierem a causar, no exercício de suas
atividades, em ação regressiva, considerada compulsória, sob pena de
improbidade administrativa do representante judicial do Estado que não propuser
a demanda regressiva.
As
serventias extrajudiciais são uma alternativa para a efetivação do direito de
acesso à justiça. Inúmeras ações e procedimentos migraram da seara judicial
para os ofícios notariais e registrais, especialmente quando não houver
litígio, como é o caso de separações, divórcios, inventários, alterações de
nome, celebração de acordos, mediação, conciliação e uma infinidade de outros atos
relevantes, que foram desjudicializados e permitem aos interessados idêntica
satisfação que obteriam pela prestação
jurisdicional, contribuindo para a paz social e auxiliando na mitigação do
volume de processos apresentados ao Poder Judiciário (SARDINHA, 2019, p. 139).
Inegável,
portanto, que as serventias extrajudiciais promovem o acesso a soluções de
cunho jurídico, com o crescente aumento das atribuições dessa natureza, com o
que, em igual medida, viram potencializados os riscos da atividade e a
consequente probabilidade de serem responsabilizados pelas condutas dolosas ou
culposas que praticarem no exercício de suas funções.
8. CONCLUSÃO
A
temática em estudo diz respeito ao exame da constitucionalidade do artigo 22 da
Lei nº 8.935/1994, diante das disposições dos artigos 37, § 6º, e 236 da
Constituição Federal. Após acalorados debates e divergências, a maioria dos
Ministros do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº
842.846/SC, em 27 de fevereiro de 2019, com Repercussão Geral – Tema 777, entendeu de manter a teoria da
responsabilidade civil objetiva do Estado, por risco administrativo,
socializando os prejuízos advindos da atividade lesiva praticada pelos
delegatários das serventias extrajudiciais, por desempenharem funções públicas
relevantes, sob fiscalização do Poder Judiciário, ainda que atuem em regime privado.
A
decisão assentada pela Corte Suprema trouxe alguma tranquilidade aos notários e
registradores, pois não serão demandados diretamente pelo particular, nem
denunciados à lide pelo Estado, já que reconhecida apenas a possibilidade de
responderem, subjetivamente, na via regressiva. Caso demandados diretamente
pelo lesado poderão, em defesa, sustentar a ilegitimidade de parte. Além disso,
a decisão lhes foi benéfica no que diz respeito a sua exclusão do conceito de
pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, conforme
previsto no § 6º do artigo 37 da Constituição Federal. Caso fossem assim
enquadrados na norma constitucional referida, responderiam, de forma objetiva e
primária, pelos danos que cometessem no exercício das suas atividades, ocasião
em que a responsabilidade do Estado seria subsidiária. A Corte Suprema, apegando-se
à distinção entre pessoa jurídica e
pessoa física, concluiu que os notários e registradores, por serem particulares
em colaboração com o poder público, incluem-se na categoria de agentes públicos,
que comprometem o Estado na prestação de serviços de natureza pública, presente
a norma específica do artigo 236 da Carta da República, que atribui à lei, no caso a Lei nº 8.935/94, o regramento da
atividade, exercida em caráter privado, sob a fiscalização e orientação do
poder público. Quanto à natureza de sua responsabilidade, o artigo 22 da
mencionada lei regulamentadora é expresso em considerá-la subjetiva, a demandar
a investigação da conduta dolosa ou culposa, em ação de regresso, a ser
proposta pelo Estado.
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Acesso em 10/11/2019.
[1]
Provimento nº 33/2018, da Corregedoria-Geral de
Justiça do RS, DJE nº 6.363, p. 3, de 05/10/2018.
[2]
Participaram como Amicus Curiae várias
entidades representativas do setor: Associação dos Notários e Registradores do
Brasil – ANOREG-BR, Instituto de Estudos e Protestos de Títulos do Brasil –
IEPTB e Colégio Notarial do Brasil – CNB.