A pessoa acometida de enfermidade grave ou com idade
avançada não está impedida de testar
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde
classificou a doença pelo doronavírus 2019 (covid-19), causada pelo vírus
SARS-CoV-2, como pandemia.
O vírus, originalmente surgido na China e que se espalhou
pelo mundo numa velocidade extremamente alta, já chegou ao Brasil. O primeiro
caso que se teve notícias foi em dezembro de 2019 em Wuhan, capital da
província de Hubei, na China.
Em março já atingiu o Brasil tendo a primeira morte
registrada em 17/3/2020, na cidade de São Paulo. Em 20/3/2020 foi iniciado um
isolamento da população brasileira com o objetivo de controlar a disseminação
da doença, transmissível por gotículas emanadas da pessoa doente (que muitas
vezes está assintomática) e cuja letalidade afeta principalmente idosos,
cardiopatas, pessoas com diabetes e com doenças autoimunes. Em alguns países,
como se pode citar o caso da Itália, o isolamento foi tardio, fazendo com que o
número de mortes, num espaço de tempo muito reduzido, fosse enorme. Como
resultado, corpos se espalham em igrejas e, por conta da transmissibilidade,
velórios foram proibidos, não havendo por parte dos parentes, qualquer
despedida. Há relatos de pessoas em quarentena dentro de hotéis, onde
acompanhantes de quartos falecem e ficam vários dias até que alguém venha pegar
o corpo para enterrar. Tais situações causam grande tristeza e, também, muito
medo em países onde o vírus ainda não se espalhou com tamanha proporção.
Através do isolamento, por enquanto, o Brasil vem
controlando os casos confirmados da doença e, via de consequência, o número de
mortes. Mas, em havendo estas (cujos números sobem a cada dia), surge para o
Direito Sucessório alguns pontos a serem considerados, dentre eles, a liberdade
testamentária em situação de isolamento social e de suspensão de alguns
serviços, como o cartorário.
Antes de adentrar nas particularidades de cada modalidade de
testamento, importante ressaltar que o testador deve ser pessoa capaz (com
discernimento e compreensão do ato em si), maior de 16 anos (que ante a
impossibilidade do testamento conjuntivo, nos termos do artigo 1.863 do Código
Civil, não necessita de representação legal para feitura do ato) e deve
seguir fielmente os requisito legais referentes a modalidade de testamento que
escolheu. Assim, a pessoa acometida de enfermidade grave ou com idade avançada
não está impedida de testar.
Sobre o conteúdo das disposições testamentárias, deve ser
observado, inicialmente, a existência de herdeiros necessários, eis que, nessa
situação, a legítima (50% do patrimônio particular do testador) deve ser
reservada, não podendo as disposições testamentária exceder esse importe. Caso
não tenha herdeiros necessários, está livre para testar sobre todo o seu
patrimônio. Não devem ser contemplados no testamento: o indivíduo não concebido
até a morte do testador (ressalvada a prole eventual do artigo 1.799, I do
Código Civil); pessoas jurídicas de direito público externo (nos termos do
artigo 11, parágrafo 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro);
a pessoa que a rogo escreveu o testamento, seu cônjuge ou seu companheiro, seus
ascendentes e irmãos (art. 1.801, I, do CC); as testemunhas do testamento (art.
1.801, II, do Código Civil); o concubino do testador casado, salvo a exceção do
artigo 1.801, III, do CC e; o tabelião, civil ou militar, ou o comandante ou
escrivão, perante quem se fizer, assim como o que fizer ou aprovar o testamento
(art. 1.801, IV, do CC).
Pelas leis brasileiras, existem três tipos de testamentos
ordinários: público, cerrado e particular.
O testamento público (art. 1.864, CC), em razão da não
consideração desse serviço como essencial (segundo as normatizações que vem
sendo expedidas na atual situação), não pode ser efetivado, uma vez que
necessita do cumprimento dos requisitos essenciais, sendo um deles, ser escrito
por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas (art. 1.864, I).
Outro requisito essencial é a presença de duas testemunhas
idôneas. Estas, em obediência ao que prescreve o art. 228 do Código Civil não
podem ser: os cônjuges, os ascendentes, os descendentes e os colaterais, até o
terceiro grau, por consanguinidade ou afinidade, do testador. Assim,
em situações de isolamento social, as pessoas no ambiente familiar, em regra,
estão impedidas de testemunhar, nos termos do inciso V do citado artigo. Deve o
testamento ser lido na presença do tabelião (que em tempos de coronavírus estão
com a maioria dos serviços suspensos) e das testemunhas (raramente possíveis em
situações de isolamento social). No final, deve o testador assinar o
testamento, juntamente com o tabelião e as testemunhas.
Restrição similar ocorre com o testamento cerrado, uma vez
que necessita da aprovação pelo tabelião ou seu substituto legal (art.
1.868, in fine) e de testemunhas. Também é importante registrar a
necessidade de que a cédula testamentária seja escrita pelo testador ou por
alguém a seu rogo; assinatura do testador; entrega da cédula testamentária pelo
testador ao tabelião na presença de duas testemunhas; feitura do auto de
aprovação e leitura pelo tabelião ao testador e as testemunhas; por último, o
auto de aprovação deve ser lacrado pelo tabelião.
Para o testamento hológrafo ou particular, apesar de
dispensar a presença do notário, necessita de três testemunhas as quais deverão
ser contestes sobre o fato da disposição, ou, ao menos, sobre a sua leitura
perante elas, e, devem reconhecer as próprias assinaturas, assim
como a do testador, para ser o testamento confirmado (art. 1.878).
Percebe-se que a leitura dos termos do testamento, exigida
como requisito para esta modalidade, pode ser feita a distância de,
no mínimo, um metro e meio (exigida pelo Ministério da Saúde como forma de
evitar a contaminação pelo coronavírus), mas a assinatura do testador e das
testemunhas, será num único documento que não pode ser higienizado com álcool
em gel para evitar o contágio (entre uma assinatura e outra),
tão pouco lavado com água e sabão. Quanto a essas testemunhas,
restaria a possibilidade de chamar vizinhos (se existentes e consentirem em
realizar tal ato correndo o risco de contaminação), eis que parentes estão
proibidos pelo artigo 228 do Código Civil, supra mencionado.
Nesses termos, por esse raciocínio, só sobraria como
possibilidade de testar, o testamento particular presente no artigo
1.879, verbis:
Art. 1.879. Em circunstância excepcionais declaradas em
cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem
testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz.
O testamento em "circunstância excepcionais"
dispensa testemunhas, mas exige que o testador declare na cédula testamentária
quais seriam essas circunstâncias, no caso da pandemia do coronavírus seria o
isolamento domiciliar; fazer de próprio punho, o que inviabiliza a utilização
de processos mecânicos e; ao final, a assinatura do testador.
Assim, é indispensável a justificação, que, nas palavras de
Arnaldo Rizzardo, somente merecerá acolhida se ponderável e convincente, de
modo a formar a convicção da impossibilidade de serem procuradas testemunhas,
ou de extrema dificuldade em serem encontradas1. Portanto, o testador deve
expressar na cédula testamentária as circunstâncias que o levaram a testar sem
a participação de testemunhas. Isso porque essa forma testamentária, admite
como testamento válido, um simples escrito particular, sem observância dos
requisitos obrigatórios nas demais modalidades de testamento, inclusive no
particular. Uma verdadeira flexibilização dos requisitos previstos para testar
no Brasil.
Interessante que, durante muito tempo, nas aulas de Direito
Sucessório, existia a dificuldade de vislumbrar uma situação fática que se
adequasse a esse artigo para exemplificar aos alunos, pois os exemplos
existentes nos livros de Direito como situações de cárcere privado ou sequestro
deixava uma lacuna de como o testador conseguiu papel e caneta para testar, bem
assim de como esse testamento, após a morte durante o cárcere, seria entregue a
um juiz. Mas, infelizmente, na atual situação pela qual passa, não só o Brasil,
mas o mundo, somente visualizo essa modalidade como viável para se fazer
testamento.
No entanto, importante informar que tal modalidade
testamentária não resguarda o deficiente visual (cego), que só pode testar na
modalidade pública, nos termos expressos do artigo1.867 do Código Civil. Também
estaria impedido de testar por essa forma o analfabeto, por razões óbvias.
Quanto ao deficiente auditivo (surdo) ou de produzir fala (mudo), desde que,
saibam e possam escrever, poderiam se utilizar de tal modalidade de testamento
particular.
Assim, em tempos de isolamento social por conta da pandemia
do coronavírus, aqueles que decidirem dispor de seus bens por ato de última
vontade, que não conseguirem reunir os requisitos previstos em lei para as formas
ordinárias de testar, devem fazê-lo nos termos do artigo 1.879 do Código Civil.
Fonte: Migalhas