O artigo que apresentamos resulta do desafio que me
foi proposto pelo Senhor Doutor Sérgio Jacomino, ilustre registrador e cultor
da ciência jurídica, no IX encontro de Direitos Reais, de Direito Registal
Imobiliário e de Direito Notarial que teve lugar no colégio da Trindade, em
Coimbra, no passado dia 22 de maio de 2024.
No referido evento apresentei umas breves notas,
tentando contribuir, como debatedor, para ampliar/apelar ao debate sobre as
implicações da Inteligência Artificial (doravante "IA") no método
jurídico e em especial na atividade notarial e registal.
A IA aparece como produto da inovação científica sem
paralelo e que se vem desenvolvendo desde há, pelo menos, sete décadas,
procurando imitar o cérebro humano com a finalidade de o aperfeiçoar e de
superar as nossas capacidades cognitivas.1
Há
quem afirme que estamos perante uma concorrência de inteligências!
A IA vai, paulatinamente, afastando e substituindo o
trabalho intelectual dos seres humanos, especialmente no âmbito de profissões
mais técnicas, como por exemplo, construir uma ponte, fabricar um automóvel,
construir um edifício, controlar o tráfego aéreo. O surgimento da IA poderá
representar, assim, impacto sobre a História da humanidade muito diferente
daquele que teve a revolução agrícola ou a revolução industrial - esta é a
primeira revolução a pôr em causa, também, as profissões que exigem um nível superior
de diferenciação.
Perante este cenário, qual o nosso papel, enquanto
seres humanos, num mundo em que a IA cresce exponencialmente e nos afasta como
medida de todas as coisas?2
Que valor podemos acrescentar à IA quando esta
cresce em capacidade que lhe permite "pensar" mais (que não melhor)
em termos estatísticos do que a inteligência humana?
A
resposta estará no controlo, direção e governo da IA.
Empresas como a Google, Amazon, Facebook (Meta) e
Apple, conhecidas pelo acrónimo GAFA são o produto da "Era do
Petabyte", uma nova era da nossa História reveladora do aumento
exponencial da massa de dados digitalizados cada vez mais acessíveis porque se
encontram hoje numa "nuvem" e já não em disquetes, discos duros ou
pen drives.
Como referiu o ilustre notário espanhol Manuel
González-Meneses García-Valdecasas3, o método científico sempre foi construído
sobre hipóteses submetidas a testes.
Na verdade, continuando a acompanhar o autor citado,
quer a física (não só a clássica newtoniana, mas também a quântica), quer a
biologia, têm oferecido aproximações à verdade, mas incapazes de nos dar conta
de toda a complexidade do real. Hoje, com os petabytes, é possível afirmar que
a correlação é suficiente: deixou de ser necessário lançar mão de modelos
explicativos, isto é, podemos analisar dados sem necessidade de formular
hipóteses, bastando lançar números sobre potentes computadores e deixar que os
algoritmos estatísticos encontrem soluções em padrões que os cientistas não são
capazes de ver.
Exemplos desta nova forma de fazer ciência são a
sequenciação genética aleatória levada a cabo já no início deste século pelo
biólogo J. Craig Venter e que permitiu descobrir novas formas de vida. Mas
também o programa Cluster Exploratory, plataforma destinada a mimetizar o
cérebro e o sistema nervoso.4
O ritmo é estonteante e hoje, face à quantidade de
dados disponíveis e ao seu tratamento, assistimos a fenómenos como o machine
learning, o processamento de linguagem natural e a própria inteligência
artificial generativa.
Esta
revolução no método científico será transponível para o método jurídico?
Perante todo este ruído, toda esta massa de dados,
todo o avanço tecnológico de que é exemplo candente o ChatGPT, partilhamos
algumas das questões levantadas por González-Meneses:
Vamos continuar a ter necessidade de juristas? É
necessário fazer um curso de Direito, com a memorização de doutrina,
jurisprudência, definições e antecedentes históricos? Afinal, toda essa
informação não está já na nuvem?
Vamos continuar a fazer todo um percurso de estágio
e de experiência profissional para sermos magistrados, notários, conservadores
dos registos ou advogados?
Continuamos vinculados a uma lógica jurídica baseada
em normas, regras ou princípios gerais e na consequente qualificação jurídica
ou aplicação da regra geral ao facto concreto?
Uma análise superficial pode levar-nos a concluir
que esta é uma tarefa de fácil tratamento algorítmico. Em breve, não teremos
ferramentas informáticas que permitirão processar, de forma automática, todos
os dados disponíveis nos tribunais, nos cartórios, nos serviços de registo e
nos escritórios dos advogados para correlacionar padrões que possam servir de
base a decisões adequadas ao caso concreto?
Continuaremos vinculados à lógica jurídica de
subsunção de um facto concreto a uma regra geral, ou seja, ao silogismo legal
que é uma forma de dedução?
Aparentemente, este exercício de qualificação
encaixaria bem numa ferramenta informática desenvolvida pela IA, mas aquele
exercício convoca uma tarefa intelectualmente bem mais complexa que requer ao
aplicador do Direito um entendimento do significado da norma, regra ou critério
geral e da sua relação com os interesses ou valores do caso concreto a
subsumir. Requer, ainda, a seleção da norma que será relevante para o caso
concreto, de entre as inúmeras normas de diferentes ordenamentos jurídicos.
O tradutor DeepL ou outros disponíveis à distância
de um click, para traduzir de forma aceitável um determinado texto, não precisa
de compreender as regras gramaticais de determinado idioma, pois o processo de
tradução é estatístico, baseado na comparação e análise de uma massa infinita
de dados. Também não lhe interessa o significado dos textos que traduz, nem a
relevância dos mesmos para quem requer a tradução ou a adaptação linguística ao
destinatário da tradução.5
No limite, podemos optar por um sistema de decisão
jurídica que não subsuma factos a regras ou princípios gerais e que não precise
de nenhum modelo conceptual. Este sistema, alimentado por milhões de textos
jurídicos anteriores (sentenças, articulados, escrituras públicas, registos),
operaria de forma indutiva e estatística gerando, automaticamente, soluções com
base em semelhanças ou padrões detetados sem necessidade de perceber o
significado ou sentido de nenhuma norma, conceito, ou teoria abstrata.
Poderia
ser uma opção política, legitimada pelo povo, no contexto de uma democracia.
A este propósito é muito interessante a posição
assumida pelo norte americano, Erik J. Larson, um informático e empreendedor
tecnológico, no livro "The Myth of Artificial Intelligence. Why Computers
Can't Think the Way We Do?"6 que se mostra muito crítico com o
projeto científico e tecnológico da IA e, em particular, com a ideia de que o
aparecimento da IA de nível humano ou sobrehumano é uma inevitabilidade quase
iminente. Segundo este autor, os promotores da IA cometem um grave erro intelectual:
por um lado, sobrestimam de forma pouco científica a capacidade real da IA,
mesmo no estado da arte atual e, por outro, subestimam a inteligência natural
humana.
Para fundamentar esta posição, Larson invoca a
autoridade do filósofo Charles Peirce, para explicar que a inteligência
diferencial humana não é aquela que se manifesta em processos lógicos de
dedução (que se limita a tornar explícito o conhecimento que já estava
implícito em algumas premissas) ou da indução (que pretende obter um
conhecimento geral, partindo da acumulação de observações particulares ou
singulares), processos que os computadores já conseguem fazer com êxito.
Aquele filósofo defende que a inteligência
diferencial humana se manifesta num processo a que chamou "abdução",
ou seja, a capacidade de conjeturar ou prever por forma a obter uma hipótese
explicativa com base em determinados dados. Ora, segundo este autor, o único
tipo de pensamento que funcionaria para uma IA de nível humano é justamente
aquele relativamente à qual não há ainda ideia de como desenhar ou programar.7
A pretensão de que as máquinas, por si só, e em
função da quantidade massiva de dados que estão à sua disposição, são capazes
de avançar o nosso conhecimento científico é posta em causa por Larson ao afirmar
que: "(q)uando Copérnico defendeu que a terra girava à volta do sol e não
o inverso, teve de ignorar montanhas de evidências e dados acumulados durante
séculos por astrónomos que trabalhavam o modelo ptolomaico. Copérnico
redesenhou tudo com o Sol no centro e fabricou um modelo heliocêntrico. Ora, só
ignorando todos os dados anteriores ou, ao menos, reconceptualizando-os, pôde
Copérnico afastar o modelo geocêntrico e introduzir uma estrutura radicalmente
nova para o sistema solar". E conclui: "como é que o big data poderia
ter ajudado neste processo se todos os dados se encaixavam num modelo
equivocado?".
A IA que combina a base massiva de dados e a
aprendizagem automática (big data e machine learning) usa um sistema de indução
automatizada e não uma verdadeira inteligência com capacidade cognitiva. O
problema de conhecimento não será, assim, quantitativo. A disponibilidade de
mais dados, de novos dados, pode ajudar-nos a detetar um modelo explicativo
erróneo, mas não nos oferece, por si só, uma nova explicação.
Assim, só o controlo efetivo da IA poderá manter a
nossa capacidade de preservar a inteligência natural, a inteligência humana,
como defende o ilustre Professor de Filosofia do Direito da Universidade
Pontifícia de Comillas, José María Lasalle Ruiz8.
E esse controlo implicará a aplicação da nossa
inteligência e capacidades cognitivas, restaurando a sabedoria aristotélica que
procurava a prudência como suporte da equidade.
A prudência, a par da justiça, da força e da
temperança, é uma das quatro virtudes cardeais da Antiguidade e talvez a mais
esquecida. Virtude intelectual, explicava Aristóteles, na medida em que tem a
ver com a verdade, com o conhecimento e com a razão. A prudência é a disposição
que permite deliberar corretamente acerca do que é bom ou mau, não em si, mas
no mundo tal como ele é, não em geral, mas nesta ou naquela situação e que nos
leva a agir de acordo com o bem. A prudência condiciona todas as outras virtudes
e é o que separa a ação do impulso.9
Sem a prudência como suporte da equidade, a decisão
humana será substituída, também no Direito, pela lógica do conhecimento que
nasce da gestão algorítmica de uma massa infindável de dados. E se as regras
passarem por aqui, então já perdemos o "jogo" para as máquinas.
Se a IA é algo ou uma coisa que aspira em ser
alguém, então cabe ao ser humano ser a sua consciência crítica e decisória,
garantido o seu controlo.
É um desafio para inteligência humana que no campo
do Direito implica a restauração da iuris prudens principio que interpretou o
Direito como "ars iuris" (arte de fazer o justo), do "suum
quique tribuire" (dar a cada um aquilo que é seu).
Devemos resistir à tentação de aceitar a
oferta de uma segurança jurídica infalível imposta por uma ditadura da IA.
O ser humano deve, pelo contrário, afirmar a
sua condição, acrescentado um valor que não pode ser deixado ao tratamento
algorítmico. Só os seres humanos poderão decidir o que significa dar a cada um
o que é seu.
O aplicador do Direito tem de ir mais além, entendendo
o significado da norma que vai aplicar e a sua relação com os interesses e
valores em causa, num determinado caso concreto a subsumir com as regras ou
princípios gerais, porque presenciou, viu, ouviu, relacionou.
Acredita-se que uma civilização apoiada na
tecnologia da informação pode disponibilizar ferramentas mais sofisticadas e
eficientes para a manutenção da paz social, mas o problema do conhecimento não
é quantitativo. Mais dados, novos dados, ajudam-nos a detetar que um
determinado modelo pode estar errado, mas não nos oferecem, por si só, novas
explicações. Há que atribuir um significado aos dados, construir um novo
modelo.
Em recente entrevista ao diário espanhol ABC, o
matemático, Pablo Morales10, galardoado com o "Premio Talento Joven
Fundación BBVA" por ter desenhado algoritmos que permitem detetar ondas
gravitacionais afirmou: "(t)rabalho com algoritmos, mas por vezes
surpreendem-me, pois tomam decisões, mas não sabem explicar porquê! Mesmo
quando acertam, não existe a explicação que se exige a um médico, a um
juiz." e continua: "[o]s algoritmos são treinados com milhões de
dados disponibilizados pelas pessoas, e cada vez precisam menos de nós. Mas eu
confio em fontes de prestígio, de cientistas que conheço. A reputação continua
a ser um assunto dos seres humanos."
Como bem assinalou Sérgio Jacomino11,
"(d)evemos manter a inquietação, o inconformismo, em face da investida
neopositivista que esta vaga tecnológica representa. Como o Dr. Pangloss, na
novela de Voltaire, a IA fala sobre tudo e todos, pontifica como o eixo
plenário do conhecimento humano.. Mas Voltaire não pode compreender a dimensão
de Leibniz. O melhor mundo possível não é aquele que exonera o homem e
Deus". E conclui: "(a) IA é a expressão de um otimismo
idealista. Os idealismos provaram ser o veneno da liberdade humana".
Por tudo o que fica dito, parece-nos que atribuir à
IA capacidades cognitivas de que esta ferramenta realmente carece pode
levar-nos a delegar competências decisórias sobre questões humanas que excedem,
verdadeiramente, a sua capacidade
Fonte: Migalhas