Com quase 6 milhões de atos digitais, os
cartórios do Brasil vivem a maior revolução jurídica desde sua criação.
Giselle Oliveira de Barros
Presidente do Colégio Notarial do Brasil –
Conselho Federal
Foi quase como em um piscar de olhos. Com
mais de 460 anos de história de serviços prestados à população brasileira, os
Cartórios de Notas vivenciaram nos últimos cinco anos uma mudança completa de
paradigma, que transformou radicalmente a maneira pela qual o cidadão utiliza
seus serviços. Hoje, cerca de 50% de todos os atos praticados no país já são
realizados de forma digital. O tabelião remoto tornou-se parte da rotina do
brasileiro.
Os números falam por si. Levantamento
realizado pelo CNB/CF - Colégio Notarial do Brasil - Conselho
Federal, entidade que reúne os mais de 8 mil Tabelionatos de Notas brasileiros,
mostra que o percentual de atos online, que vem praticamente dobrando ano a ano
desde o lançamento da plataforma eletrônica e-Notariado
(www.e-notariado.org.br), passou a quase igualar, neste último quinto ano de
funcionamento, a quantidade de atos realizados presencialmente.
Regulamentada pelo CNJ, por meio do
provimento 100/20 da Corregedoria Nacional de Justiça, a plataforma permite
hoje a prática de 100% dos atos notariais de modo eletrônico - do
mais simples reconhecimento de firma ao mais complexo inventário - o que fez a
participação odo digital disparar. Enquanto no segundo ano de operação os
serviços digitais representavam 5,7% do total de atos praticados nos Cartórios,
no terceiro ano estes saltaram para 15,7%, no quarto para 26,7%, até chegarem
aos atuais 47%, com tendência de superarem os atos presenciais até maio de
2026.
Dos reconhecimentos de firmas aos
testamentos, das procurações aos divórcios, das escrituras de compra e venda de
imóveis aos inventários, tudo pode ser feito eletronicamente, independentemente
de onde o cidadão esteja. Por meio da plataforma, que opera com tecnologia
própria em blockchain, um usuário em São Paulo pode assinar digitalmente a
compra de um imóvel com a outra parte localizada em Fortaleza. Um casal
separado por cidades diferentes pode, cada um de sua residência, firmar
remotamente um divórcio consensual, com validade jurídica plena.
Mais que isso, situações reais comprovam o
impacto do cartório digital na vida dos brasileiros. Um exemplo é o de dois
irmãos residentes em estados distintos que, durante a pandemia, conseguiram
lavrar e assinar remotamente uma escritura de partilha de bens, dando fim a um
processo de inventário que se arrastava por anos. Outro caso envolveu a
autorização eletrônica de viagem internacional para um menor, emitida em
minutos, em um sábado à noite, por pais divorciados que residem em cidades
diferentes, possibilitando que seu filho embarcasse em um voo internacional.
Essa facilidade de acesso fez com que os
números absolutos crescessem de forma exponencial. Entre maio de 2020 e maio de
2021, primeiro ano da plataforma, foram realizados 84.479 atos digitais. No
período seguinte, esse número saltou para 387.550, um crescimento de 359%. No
terceiro ano, o total subiu para 976.151 (aumento de 152%). O quarto ano
registrou 1,7 milhão de atos eletrônicos, chegando, neste último ciclo,
a 2,5 milhões de serviços digitais - um crescimento acumulado
superior a 2.880%. Ao todo, quase 6 milhões de atos online já foram
praticados no Brasil.
A necessidade, sem dúvida, é a mãe da
inovação. Em 2020, com a pandemia da Covid-19 instalada, o notariado brasileiro
não possuía sequer um serviço eletrônico em funcionamento. A situação se
agravou quando os cartórios foram temporariamente fechados em alguns Estados,
ainda antes de serem reconhecidos como serviços essenciais. A paralisação
afetou diretamente a vida civil e econômica do país. Foi diante desse cenário
que o setor encontrou espaço para se reinventar.
Em meio a um ambiente altamente regulado,
nasceu no seio do Colégio Notarial do Brasil, com apoio de notários de diversos
estados, a proposta da plataforma e-Notariado. Após debates intensos e reuniões
técnicas, a ideia foi apresentada à Corregedoria Nacional de Justiça, que
a autorizou e normatizou por meio do provimento 100/20. Assim,
consolidou-se o que viria a ser a maior transformação digital da história dos
serviços notariais no Brasil.
Hoje, a digitalização dos atos notariais é
um instrumento de cidadania. Em um país com dimensões continentais e profundas
desigualdades, o acesso remoto ao cartório garante que cidadãos em áreas
rurais, pessoas com mobilidade reduzida ou brasileiros residentes no exterior
tenham igualdade de acesso à fé pública e aos instrumentos jurídicos que
garantem segurança à sua vida civil e patrimonial.
Outro impacto relevante foi o
fortalecimento da segurança jurídica digital. A centralização dos atos no
e-Notariado, com auditoria em tempo real, uso de trilha completa de
rastreabilidade, integração com bases públicas e certificação digital própria,
elevou o padrão de confiança dos atos praticados. O uso do blockchain notarial
- chamada notarchain - confere inviolabilidade aos documentos, impedindo
fraudes e reforçando a credibilidade do serviço.
A repercussão internacional confirma a
relevância do modelo. Relatórios como o B-Ready Report do Banco
Mundial, que avalia o desempenho de países em práticas de registro e segurança
jurídica, já apontam os notariados do modelo do tipo latino - com destaque para
o Brasil - como referência global em digitalização. Fóruns promovidos
pela UINL - União Internacional do Notariado, uma entidade que reúne
92 países com o mesmo modelo notarial que o brasileiro, têm apresentado o
e-Notariado como case exemplar de interoperabilidade e capilaridade.
Esse reconhecimento internacional decorre
de uma atuação articulada entre os notários, o CNB/CF, o CNJ e o Poder
Judiciário, que criaram um ecossistema normativo e tecnológico sólido,
compatível com os mais altos padrões internacionais de proteção de dados,
validação de identidade e confiabilidade jurídica.
Se o primeiro ciclo do e-Notariado foi de
construção e superação de obstáculos, o novo momento será de consolidação
e expansão funcional. Lançamento de novas soluções, como Escrow Account e as
Smarts Escrituras, emissão automatizada de certidões, uso de inteligência
artificial para análise documental e o avanço da assinatura
biométrica digital já estão em curso.
O cartório digital já é o novo normal -
mas o compromisso do notariado com a inovação e com o cidadão continua. Os
próximos anos exigirão ainda mais ousadia tecnológica, empatia social e diálogo
institucional. E se os últimos cinco anos servem de termômetro, é seguro dizer:
o Brasil está na vanguarda da transformação jurídica digital.
Fonte: Migalhas