A utilização de processo eletrônico, especialmente em um
país de dimensões continentais, deve continuar a ser incentivada, na medida em
que proporciona maior acesso à Justiça, facilitando a prática de atos
processuais à distância
1. Processo eletrônico e certificado digital
Vivenciamos a era da revolução tecnológica, a qual não
passou despercebida pelo Poder Judiciário. Cada vez mais é adotado o processo
eletrônico ou, pelo menos, são empregadas tecnologias digitais em juízo – em
que pese algumas referências, aqui e ali, à utilização do papel, inclusive no
atual CPC (v., por exemplo, arts. 107, II e III, 202, 207 e 383). Da mesma
forma, a intimação por meio eletrônico é hoje prevista como a modalidade
preferencial na legislação processual (art. 270, CPC).
A utilização de processo eletrônico, especialmente em um
país de dimensões continentais, deve continuar a ser incentivada, na medida em
que proporciona maior acesso à Justiça, facilitando a prática de atos
processuais à distância, como a realização de audiências ou de sustentação oral
por videoconferência (v. arts. 236, § 3º, 385, § 3º, 453, § 1º, 461, § 2º, 464,
§ 4º e 937, § 4º do CPC). Isso sem falar que o processo eletrônico permitiu que
o Poder Judiciário continuasse funcionando, ainda que com determinadas
limitações, mesmo em tempos de crise sanitária da covid-19 e de isolamento
social.
Para além disso, a utilização do processo eletrônico pode
conferir maior transparência (accountability) ao funcionamento das serventias
judiciais, identificando prontamente onde se encontram os gargalos no trâmite
dos processos e auxiliando no combate das “etapas mortas” – ou seja, dos lapsos
temporais em que o feito permanece paralisado, sem a realização de nenhum ato,
aguardando que providências cartorárias sejam concretizadas, como a juntada de
petições ou a digitação de ofícios.1
Nada obstante, como era de se esperar, a utilização do
processo eletrônico gera certas preocupações, a demandar natural necessidade de
aperfeiçoamentos. Nesse sentido, por exemplo, ainda não se unificaram os
diversos sistemas eletrônicos em todos os tribunais do país (e por vezes até mesmo
no âmbito do mesmo tribunal), em que pese os esforços do CNJ nessa
direção.2 Isso gera algumas perplexidades, como a inusitada
“materialização” em papel de autos eletrônicos quando há declínio de
competência entre tribunais de estados diferentes.
Um dos receios trazidos pela utilização do processo
eletrônico é que, da forma como vem sendo implementado por alguns tribunais,
implica silenciosa ameaça à proteção de dados pessoais dos advogados que
necessitam peticionar em juízo.
Isso porque, antes do processo eletrônico, o protocolo de
petições assinadas pelos advogados consistia em tarefa simples, que podia ser
facilmente delegada a outras pessoas, até mesmo sem qualquer formação jurídica.
O portador limitava-se a entregar a petição, já devidamente assinada, no
sistema de protocolos, localizado no tribunal, saindo com o comprovante. A
identidade de quem peticionava em juízo era aferida pela sua assinatura.
Agora não. O protocolo se transformou em ato personalíssimo
e privativo do advogado, que deve fazê-lo pessoalmente (v. art. 2º da lei 11.419/06),3 utilizando sua identidade virtual,
no mais das vezes por meio do seu certificado digital. E não precisaria ser assim,
como nunca tinha sido até o advento do processo eletrônico. Atualmente, em
alguns tribunais, o advogado deve não apenas protocolizar a petição com o seu
certificado digital, como necessita assiná-la também utilizando o seu token.4
Além do protocolo, o controle de intimações eletrônicas
também passou a ser ato privativo do advogado, vez que as intimações aparecem
vinculadas ao seu certificado digital ou login. Antes, era possível delegar a
qualquer um a leitura do Diário Oficial, havendo empresas especializadas nesta
função.
Dessa forma, a lei do processo eletrônico, se por um lado
proporcionou maior eficiência ao sistema processual, por outro criou ônus
operacional altíssimo para os advogados, que precisam pessoalmente acompanhar
intimações e fazer protocolos, atividades que, até então, não faziam,
necessariamente, parte de sua rotina.
2. Alienação do corpo eletrônico do advogado
Para além do aumento da complexidade operacional decorrente
dos protocolos e intimações por meio eletrônico, há, ainda, significativo risco
aos direitos fundamentais dos advogados. Afinal, o certificado digital
representa a própria pessoa do advogado: é a sua projeção virtual.
O advogado que se vê compelido a delegar o protocolo de
petições e o acompanhamento de intimações – o que é bastante frequente em um
país em que se acumulam milhões de processos, atuando um mesmo profissional em
milhares deles – paga um preço muito alto por isso, que não deveria ter de
pagar: abre mão do seu próprio corpo eletrônico.
Ao “emprestar” seu token a outrem como forma de viabilizar a
continuidade de suas atividades, notadamente para fins de peticionamento
eletrônico e acompanhamento de intimações, além de descumprir orientações da
Autoridade Certificadora da OAB,5 o advogado empresta o seu próprio corpo,
cede a sua pessoa.
Como ensina Stefano Rodotà, o corpo humano está em contínua
transformação. Expandiu-se para além da sua unidade física, com a possibilidade
de depositar partes do corpo (sangue, gametas etc.) em bancos apropriados;
projeta-se para além da morte, como se vê da possibilidade de procriação post
mortem; e também se observa a crise de sua materialidade, com o nascimento do
corpo eletrônico, que projeta a pessoa no mundo virtual. Neste contexto,
respeitar o corpo humano em sua integridade significa ir além dos limites
antigos do corpo físico, devendo-se tutelar todas as projeções da pessoa
humana.6
O certificado digital é o corpo eletrônico do advogado que,
ao transferi-lo, expõe-se a seriíssimas agressões à sua personalidade. Por meio
do token, com efeito, é possível acessar todas as informações protegidas por
sigilo bancário e fiscal, alterá-las, outorgar procurações, enfim, fazer uma
série de atividades e acessar um sem número de documentos. Afinal, é a própria
pessoa, na sua dimensão virtual, que está a agir.7
Ainda que robôs possam ler o certificado digital e auxiliar
nessas atividades que agora se tornaram privativas do advogado, o risco não é
contornado. Transfere-se à inteligência artificial a identidade virtual do
advogado e o corpo eletrônico deste, permanecendo a vulneração à privacidade e
aos dados pessoais do advogado, que não deveria ter de transferir a ninguém ou
a qualquer robô o seu corpo eletrônico para desempenhar a sua atividade
profissional.
A sistemática apresenta em si o risco de um perigoso jogo de
tudo ou nada: ou o advogado faz pessoalmente essas atividades ou é penalizado,
tendo que transferir, de forma absolutamente desproporcional, a integralidade
do seu “eu” eletrônico. Deve haver uma saída para que, a um só tempo, haja a
necessária automatização do processo e sejam respeitados direitos fundamentais
do advogado, de forma compatível com as diretrizes da Lei Geral de Proteção de
Dados Pessoais (lei 13.709/18 – LGPD).
3. Necessário aperfeiçoamento como ponto de equilíbrio
Dúvidas não há de que as transformações tecnológicas
trouxeram significativos avanços à tramitação dos processos judiciais no
Brasil. Tal evolução deve ser celebrada, incentivada e aprofundada. Não há como
se prescindir, todavia, do equilíbrio necessário entre esse desenvolvimento e a
proteção da personalidade de todos os envolvidos.
Na realidade da maior parte dos advogados que militam nos
tribunais do país (e administram uma gama elevadíssima de processos sem possuir
grandes estruturas), sistemas de protocolo e acompanhamento que demandem o uso
da certificação digital a cada ato, com peculiaridades em cada tribunal em que
atuam, acabam por levar ao uso – informal – do certificado digital por
terceiros. Essa prática acarreta risco que, como visto acima, não se compara a
qualquer outro existente no peticionamento físico.
É fundamental, assim, que os sistemas de protocolo e a
intimação eletrônica procurem soluções tecnológicas que, ao mesmo tempo em que
garantam a verificação da identidade do signatário, exijam (não a disposição do
corpo eletrônico, mas) o mínimo de dados necessários para tal procedimento.
Afinal, como estabelece o art. 6º, III, da LGPD, o tratamento de dados pessoais
deve observar o princípio da necessidade, limitando-se ao mínimo necessário
para a realização de suas finalidades.
Nesse sentido, não há necessidade na utilização do
certificado digital – que é capaz de realizar muitos outros atos que nada têm a
ver com a atuação processual – para a simples assinatura de petições. Basta
lembrar que, no processo físico, nunca se concebeu exigir do advogado o
reconhecimento de firma nos atos de postulação em juízo. Da mesma forma, nunca
se exigiu a identificação pessoal do advogado para que esse pudesse visualizar
intimações processuais em seu nome. Muito ao contrário, a intimação sempre foi
veiculada publicamente, por meio de Diário Oficial.
E há alternativas à vista. Sistemas de protocolo que se
contentam com login e senha, sem a utilização do certificado digital, são menos
ameaçadores à personalidade do advogado. Outra interessante ferramenta pode ser
encontrada na intimação processual de sociedades de advocacia. Previsto no art.
272, §1º do CPC, o expediente pode ser empregado em tribunais, de modo que,
embora o protocolo possa ser realizado por diversos membros da mesma banca, a
intimação será direcionada ao número da OAB da sociedade de
advocacia,8 com a possibilidade de o acompanhamento de tais intimações ser
realizada sem o token da sociedade de advocacia, de modo a preservar os dados
de seus sócios, funcionários, estagiários e colaboradores.
Alternativas nessa direção, com efeito, parecem mais
apropriadas para conciliar a evolução tecnológica e a proteção dos dados dos
advogados. A rigor, o desenvolvimento de sistema que busque um instrumento
exclusivo para protocolos e intimações eletrônicas, isto é, um hardware com
certificação digital cuja única função seja realizar tais atos processuais,
afigura-se um caminho bastante adequado. Ainda, poder-se-ia propiciar ao
advogado a indicação de pessoas que possam, em seu nome e mediante autorização
eletrônica específica, realizar protocolos e acessar intimações eletrônicas
expedidas.9 Note-se que sistemas semelhantes podem ser encontrados para
atos de extrema sensibilidade – como ocorre, por exemplo, nos serviços
bancários – sem que se abra mão da segurança necessária.
No que tange à intimação eletrônica, entende-se salutar que
seu envio seja ao menos acompanhado pela imediata e simultânea certificação nos
autos da expedição da intimação, a se permitir o acompanhamento não
exclusivamente pelo advogado – como se garante com a publicação em Diário
Oficial.10 Nada impede que tal certificação nos autos seja automatizada,
dispensando intervenção humana, de maneira a se preservar a celeridade no
processo eletrônico.
Os desafios são robustos e a transformação digital,
alvissareira. A despeito dos avanços, os sistemas de tramitação eletrônica dos
processos encontram-se em constante aprimoramento e adaptação. Mostra-se
essencial que se inclua no centro dessas discussões também a tutela dos dados
pessoais dos advogados.
Fonte: Migalhas